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Marcadas para sempre

Ciência mostra que crianças submetidas a “stress tóxico”, como as que foram separadas dos pais nos EUA, carregam sequelas físicas e mentais até vida adulta

Por Fernando Louzada*
Atualizado em 4 jun 2024, 16h42 - Publicado em 29 jun 2018, 06h00

As imagens de famílias de imigrantes separadas na fronteira entre Estados Unidos e México causaram comoção em todo o mundo. Infelizmente, para as crianças, as marcas deixadas por esse sofrimento são muito mais duradouras e profundas do que se imagina. Encaradas logo no começo da vida, essas adversidades produzem um impacto negativo cujo efeito se prolonga até a vida adulta — e se reflete na saúde física e mental do indivíduo, no seu desempenho acadêmico, na produtividade no trabalho e até na maior probabilidade de envolvimento com o crime.

Os avanços das pesquisas na área das neurociências permitiram que se mapeassem as alterações cerebrais decorrentes de situações de violência como a separação de filhos dos seus pais. A infância, sobretudo em sua primeira fase, que vai até os 6 anos, é uma etapa de grande plasticidade cerebral, em que as redes formadas pelas dezenas de bilhões de neurônios se modificam a partir de novas experiências. As sinapses — conexões entre os neurônios — saem fortalecidas ou enfraquecidas, conforme a situação a que a criança é exposta. A arquitetura cerebral é “esculpida” pelas experiências. A maior plasticidade do cérebro infantil serve para expandir as chances de aprendizagem da criança, mas também aumenta a sua vulnerabilidade. As redes neurais adaptam-se tanto às situações positivas quanto às negativas.

O primeiro estudo controlado sobre as consequências da ocorrência de adversidades psicossociais na mente infantil é conhecido como Programa de Intervenção Precoce. Realizado em Bucareste, capital da Romênia, ele envolveu aspectos éticos bastante questionáveis, mas a metodologia científica é considerada adequada. A pesquisa foi aplicada em um grupo de crianças, com idade média de 22 meses, que viviam em condições de negligência em instituições romenas. Metade delas, selecionada aleatoriamente, foi transferida para lares bem estruturados; a outra metade continuou onde estava. O desenvolvimento de todas foi acompanhado ao longo da infância e da adolescência, aplicando-se no período avaliações cognitivas, socioemocionais e psiquiátricas e da estrutura e da conectividade cerebrais. Os resultados apontaram impactos em todas as dimensões. As crianças que permaneceram institucionalizadas, comparadas àquelas que viveram em ambiente familiar, mostraram atraso no desenvolvimento intelectual e significativas modificações no funcionamento cerebral, medidas por meio de eletroencefalografia, além de alterações comportamentais, como maior agressividade. A conclusão é que situações de grande impacto emocional — sejam elas positivas ou negativas — deixam marcas no cérebro.

Durante a evolução humana, a arquitetura cerebral foi construída para consolidar experiências que se mostrassem mais relevantes para a sobrevivência. Muitas vezes, situações de sofrimento são aquelas que põem a vida em risco. Sendo assim, é importante que sejam memorizadas e processadas, para que as respostas em situações futuras sejam modificadas. O excesso de stress, no entanto, traz consequências negativas para o desenvolvimento. Negligência, abuso, pobreza extrema e famílias disfuncionais são fatores que, quando ocorrem de maneira frequente ou prolongada, desencadeiam nas crianças um quadro que ganhou o nome de “stress tóxico”. Em 2012, a Academia Americana de Pediatria divulgou um documento no qual relatava seus efeitos sobre a saúde. Além de apresentarem alterações na cognição e na regulação emocional, crianças expostas ao stress tóxico têm maior risco de desenvolver problemas de saúde na vida adulta, como doenças cardiorrespiratórias, alguns tipos de câncer, doenças autoimunes e depressão.

A associação entre adversidades na infância e doenças na vida adulta foi demonstrada em uma série de estudos publicados no início da década passada. Uma pesquisa realizada na Nova Zelândia em 2002, por exemplo, divulgada na revista científica Lancet, acompanhou 1 000 crianças até a vida adulta e mostrou que aquelas cuja família apresentava dificuldades socioeconômicas desenvolviam mais problemas cardiovasculares quando ficavam mais velhas. Os mecanismos envolvidos nesse processo também vêm sendo descritos com o auxílio de estudos realizados com animais de laboratório. A elevação persistente da secreção de hormônios associados ao stress pode alterar o tamanho de diversas áreas do cérebro e a arquitetura das redes neurais, incluindo as que lidam com memória, aprendizagem e regulação emocional. Os achados dão respaldo aos resultados obtidos em pesquisas com seres humanos e aprofundam a investigação dos mecanismos pelos quais a plasticidade cerebral é afetada pelo stress crônico.

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Estudos feitos com macacos Rhesus avaliaram as consequências da separação dos filhotes da mãe em diferentes idades. Apartados com 1 semana de vida, os animais apresentaram menor contato social com outros macacos e maiores níveis de ansiedade quando adultos. Já os separados aos 3 meses não mostraram diferenças comportamentais significativas em relação aos que permaneceram com a mãe até os 6 meses — idade em que normalmente os filhotes “saem de casa” e vão formar casais para a próxima estação reprodutiva. Comparando-se o cérebro dos animais dos dois grupos, os separados da mãe com 1 semana e os separados com 3 meses de vida, observou-se uma gama de diferenças no funcionamento de genes em neurônios de regiões como a amígdala cerebral, fundamental para o processamento emocional. Isso significa que a separação não deixou apenas marcas comportamentais, mas modificou a expressão gênica dos animais — mais uma evidência de que adversidades no início da vida provocam efeitos profundos e duradouros.

Observa-se neste momento uma crescente preocupação entre os especialistas no sentido de reduzir o impacto do stress tóxico sobre crianças refugiadas, com intervenções dedicadas a ampliar os cuidados e a prevenção de sua incidência. É verdade que a questão dos refugiados é extremamente complexa. Mas o conhecimento científico alcançado sobre o desenvolvimento humano conduz à certeza de que separar pais e filhos não pode fazer parte do rol de soluções para o problema. Uma frase atribuída ao líder pacifista indiano Mahatma Gandhi diz que o futuro depende daquilo que fazemos no presente. No episódio dos imigrantes ilegais, o fato de o governo dos Estados Unidos só ter revogado a separação obrigatória de filhos e pais depois da intensa pressão da sociedade mostrou que ele trafega na contramão da história.

* Fernando Louzada é neurocientista, professor associado do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do comitê científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI)

Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589

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