Juízes ameaçados
A história registra exemplos trágicos do que pode acontecer quando criminosos se acham capazes de intimidar a Justiça
Curitiba, 3 de abril, terça-feira, quatro dias antes da prisão do ex-presidente Lula. Por volta das 20 horas, o juiz Sergio Moro chega a um restaurante num bairro nobre de Curitiba, escolhe uma mesa num canto afastado, perto da entrada da cozinha, protegido por uma mureta que dificulta olhares curiosos. O lugar está praticamente vazio. O juiz senta estrategicamente de costas para a entrada para evitar ser visto, mas parece incomodado por não conseguir observar o movimento. Olha para trás várias vezes, como se estivesse mapeando o ambiente ao seu redor. Aos poucos, o restaurante vai enchendo, o que só aumenta a inquietação. Naquela noite, para aparecer em público como um cidadão qualquer, para ter um pouco de privacidade, para beber uma taça de vinho, o juiz havia driblado o rigoroso esquema de segurança montado para protegê-lo.
Brasília, 11 de abril, quarta-feira, quatro dias após a prisão de Lula. Desde que assumiu o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, Edson Fachin cumpre uma rotina espartana. Acorda sempre antes das 8 horas, faz uma caminhada, revisa alguns processos e segue para o trabalho. Com raríssimas exceções, não costuma ir a festas nem participar da agenda social da capital. Quando não está no Supremo, está em casa. Nos pilotis do prédio onde mora, seguranças observam atentos quem entra e quem sai, abordam visitantes desconhecidos, anotam a placa dos carros. As raríssimas incursões que o ministro faz fora do Supremo são acompanhadas de perto por uma equipe de vigilância. Às 8 da manhã de quarta-feira, o ministro desceu para sua caminhada diária, seguido de perto por dois homens que deslizavam a mão sobre o coldre escondido debaixo da camisa todas as vezes que alguém se aproximava.
Sergio Moro e Edson Fachin, cada um à sua maneira, também são prisioneiros da Lava-Jato. Moro é o responsável pela operação em Curitiba, o juiz que desmantelou a monumental organização criminosa que tomou de assalto o Estado brasileiro, o autor da ordem de prisão contra o ex-presidente Lula na semana passada. Fachin é o relator do caso no Supremo Tribunal Federal (STF), o encarregado de homologar as delações premiadas que envolvem os figurões da República, o ministro que negou ao ex-presidente Lula duas tentativas de escapar da cadeia, a última delas horas antes de ele se entregar à Polícia Federal. Ambos são alvos da fúria de militantes do PT e de outras organizações radicais. Ambos estão ameaçados de morte, perderam a liberdade de ir aonde quiserem, à hora que quiserem, e são alvos de ataques que atingiram também as respectivas famílias. Por questões de segurança, os juízes não falam sobre o assunto.
Em uma entrevista recente, Edson Fachin confidenciou que ele e seus familiares estavam sendo ameaçados. “Nos dias atuais uma das preocupações que tenho não é só com julgamentos, mas também com a segurança de membros de minha família. Tenho tratado desse tema e de ameaças que têm sido dirigidas a membros da minha família”, disse Fachin ao jornalista Roberto D’Avila, da GloboNews. E acrescentou: “Eu efetivamente ando preocupado com isso — e esperando que não troquemos a fechadura de uma porta já arrombada também nesse tema”, afirmou, sem dar mais detalhes. Desde que foi sorteado relator da Lava-Jato, o ministro recebe mensagens ofensivas pela internet. Mas, até então, não considerava estar sob risco iminente e mantinha inalterada a rotina. A mudança de patamar aconteceu quando ele negou um pedido da defesa do ex-presidente Lula para afastar o juiz Sergio Moro do caso, no fim do ano passado. Depois disso, as ameaças não se restringiram mais ao universo digital.
As ameaças contra o ministro Fachin aumentaram depois que ele negou um pedido da defesa do ex-presidente Lula, que queria tirar Sergio Moro do caso
Em Curitiba, um grupo usando máscaras apareceu em frente à casa de Fachin. Acendeu velas, protestou e fez xingamentos. Mas foram eventos aparentemente desconectados que levaram o ministro a pedir reforço em sua segurança e na de seus familiares. Uma das filhas dele teve o computador de trabalho roubado em circunstâncias estranhas. Logo depois, o carro de outro familiar foi abalroado numa rua pouco movimentada da capital paranaense, também em cenário considerado suspeito. Preocupado, Fachin pediu providências à presidente do STF, a ministra Cármen Lúcia. A segurança do ministro em Brasília e a de seus familiares no Paraná foram reforçadas, e duas delegadas da Polícia Federal foram destacadas para cuidar do caso.
A tentativa de intimidar os juízes da Lava-Jato atingiu o nível considerado crítico pelas autoridades. No Rio de Janeiro, o juiz Marcelo Bretas, responsável por prender o ex-governador Sérgio Cabral, já esteve com a vida em risco em pelo menos três ocasiões. Duas delas foram identificadas pelo serviço de inteligência da Polícia Federal, mas não se conhecem os detalhes. Sabe-se apenas que foram colhidas informações sobre um suposto plano de ataque ao magistrado que estaria sendo organizado dentro de um dos presídios onde estão detidos, por decisão de Bretas, os condenados na Lava-Jato. A terceira foi revelada em um telefonema ao Disque-Denúncia. As ameaças são alvo de inquéritos sigilosos.
O magistrado, recentemente, pediu o reforço de sua segurança ao tomar conhecimento de que um homem não identificado havia estado no refeitório da sede carioca da Justiça Federal, onde trabalha, e também no prédio em que mora, no bairro do Flamengo, fazendo perguntas sobre a rotina da família. Uma viatura descaracterizada da Polícia Militar com dois homens fica permanentemente estacionada em frente ao edifício em que o juiz vive. Raríssimas vezes ele é visto andando a pé. Quando isso acontece, está sempre com seguranças a tiracolo. No fim do ano passado, Bretas publicou no Twitter uma foto segurando um fuzil, ao lado de policiais fardados, e um texto informando que acabara de passar por um treinamento de tiro. Diante do alvoroço que causou, o juiz explicou: “Eu estou preparado, mas não posso dizer que estava mandando recado a ninguém”. Ainda acrescentou: “Não sou ingênuo de achar que nada vai me acontecer”.
No Rio Grande do Sul, os desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) João Pedro Gebran, Leandro Paulsen e Victor Laus também sofrem na pele as consequências dessa onda de intimidação. Na véspera do julgamento que decretou a condenação do ex-presidente a doze anos de cadeia, os magistrados foram bombardeados com mensagens ameaçadoras disparadas pela chamada “militância virtual” do PT. Preocupados, resolveram tirar os familiares de Porto Alegre, onde ocorreu a sessão. Os desembargadores e suas famílias, desde então, também estão sob proteção policial. A PF já identificou os autores. Um deles, em vídeo divulgado nas redes sociais, estendeu as ameaças a uma “mulher” do Supremo Tribunal Federal. Os investigadores suspeitam que ele se referia à ministra Rosa Weber, que mais tarde deu o voto decisivo para a prisão de Lula.
As tentativas de intimidar as instituições constituem um retrocesso histórico e vão na contramão da evolução de uma sociedade livre e com os seus valores consolidados
Ostensivas ou veladas, as ameaças têm gerado certo impacto nos tribunais. Mesmo as que parecem ter pouca probabilidade de se concretizar provocam efeitos emocionais nos juízes e podem minar a independência de cada um deles. As ofensivas contra magistrados são, acima de tudo, um atentado ao estado de direito e à democracia. As tentativas de influir nas instituições brasileiras constituem um retrocesso histórico e vão na contramão da evolução de uma sociedade livre e com os seus valores fundamentais consolidados. “A maior preocupação são os fanáticos, a militância e os admiradores de algum partido. É difícil medir até que ponto essas pessoas estão dispostas a cometer um ato impensado. Ameaças são um atentado à democracia, porque é preciso garantir que um juiz imparcial e isento dos fatos, sem pressões, possa garantir a prestação do serviço da Justiça”, diz Luciano Godoy, ex-juiz e professor da Fundação Getulio Vargas.
Na sexta-feira 6, véspera de o ex-presidente Lula se entregar à polícia para passar a cumprir pena atrás das grades, o edifício onde a ministra Cármen Lúcia tem apartamento em Belo Horizonte foi pichado por militantes do MST com tinta vermelha, simulando sangue. Nos últimos meses, Cármen Lúcia resistiu a pressões para pautar um julgamento que poderia livrar Lula da prisão. Os juízes não se sentem à vontade em falar em público das hostilidades que sofrem.
Algumas dessas situações, quando representam uma ameaça, passam a ser investigadas pela Polícia Federal. Esse foi o caso das ofensas feitas pelo militante petista Adriano Argolo — que publicou em uma rede social que o juiz Sergio Moro iria “levar um tiro no meio da testa”. Há outras ocorrências semelhantes sendo apuradas em Salvador, São Paulo e Brasília. Por causa de episódios como esses, Moro está sob proteção policial.
No jantar em que conseguiu driblar a segurança e aparecer em um local público sem usar disfarce, o juiz comentou que está lendo pela segunda vez o livro Excellent Cadavers, do jornalista americano Alexander Stille. A obra inspirou um documentário homônimo. Moro falou sobre o longa, que começa com a morte do juiz Giovanni Falcone, responsável pela Operação Mãos Limpas, assassinado num atentado a bomba pela máfia italiana. Por volta da meia-noite, Moro pediu a conta. Antes de dar o primeiro passo em direção à saída, olhou para os lados para certificar-se de que tudo estava sob controle. Algumas mesas do restaurante permaneciam ocupadas. Um grupo que comemorava um aniversário começou a aplaudi-lo. O juiz sorriu, acenou discretamente e saiu. Na rua pouco iluminada e quase deserta àquela hora, Moro se despediu das pessoas que o acompanhavam e caminhou a passos largos até sumir na escuridão.
Com reportagem de Gabriel Castro
Publicado em VEJA de 18 de abril de 2018, edição nº 2578