Um empresário aceitaria pagar o valor de um automóvel popular usado por um carrinho de limpeza? Uma dona de casa inclui na lista de compras papel higiênico suficiente para sua família usar por vinte anos? E que tal desembolsar 12,90 reais por um cálice de plástico que vale menos que uma goma de mascar? A resposta óbvia a essas questões qualquer cidadão sabe. Na gestão pública, porém, tais disparates às vezes parecem não causar assombro. As três perguntas acima têm base em casos reais, documentados em licitações de prefeituras brasileiras. Por sorte, as negociações não vingaram. Quem fez o alerta sobre as anomalias e salvou os cofres municipais de desfalques da ordem de milhões de reais foram as equipes do Observatório Social do Brasil (OSB), uma rede de mais de 3 000 voluntários e especialistas que fiscaliza o uso de dinheiro público em prefeituras e câmaras de vereadores. No comando operacional desse batalhão está a assistente social Roni Enara, diretora executiva do OSB e finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Políticas Públicas.
O estopim para o surgimento da rede foi, evidentemente, um escândalo de corrupção. No início dos anos 2000, os moradores de Maringá, no Paraná, acompanharam estupefatos o desenrolar de denúncias que culminaram no afastamento do prefeito, na prisão do secretário da Fazenda e no desfalque de 115 milhões de reais nos cofres públicos. “Nós nos perguntávamos como não vimos tudo acontecer bem debaixo do nosso nariz”, lembra Roni. Da indignação de um grupo de cidadãos nasceu a ideia de criar um sistema de fiscalização do poder público — para evitar repetir essa pergunta outras vezes. Em 2005, foi instituído o pioneiro Observatório Social de Maringá. Atualmente, a rede atua em 135 cidades, distribuídas por dezesseis estados, e há uma fila de cinquenta municípios nos trâmites do processo de filiação.
Ela confessa que muitas vezes precisa guardar para si a revolta perante casos de desonestidade
O grande trunfo da metodologia OSB está em antecipar-se às fraudes ou aos erros que custam caro ao contribuinte. Dedica-se empenho especial às licitações municipais, a seara preferida dos políticos para embutir tramoias nas entrelinhas. Em cada observatório, uma equipe formada por voluntários e técnicos mergulha nas letras miúdas dos editais e acompanha o processo até a entrega dos bens e serviços. Quando se descobre alguma irregularidade, avisa-se a prefeitura. Casos sem solução nessa etapa são encaminhados para a Câmara de Vereadores. Passou em branco por eles? É hora da cartada final, recorrendo-se aos órgãos de fiscalização, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas. “Não há espaço para achismos, fazemos tudo no arrazoado legal e já chegamos com o calhamaço de dados”, diz Roni. Há situações mais urgentes, no entanto, que os obrigam a pular etapas. Na cidade de Paranaguá (PR), em 2015, uma licitação de 10 milhões de reais em produtos de higiene e limpeza foi direto para o MP depois que a prefeitura ignorou os alertas. O pregão foi cancelado e evitou-se a compra de papel higiênico suficiente para suprir as necessidades de toda a população, de 150 000 habitantes, por duas décadas.
As licitações “viciadas” também estão na mira. É prática em muitas prefeituras divulgar apenas à boca pequena os certames. Cria-se assim um terreno fértil para preços inflacionados e o loteamento das licitações entre os mesmos fornecedores. O OSB conseguiu romper esse ciclo. Por meio de uma plataforma digital, divulga os editais para o maior número de empresas possível. Paralelamente, promove a capacitação de pequenos empresários locais para que eles entendam os meandros do processo e entrem na disputa. Dessa forma, amplia o número de fornecedores, estimula a concorrência e impulsiona o desenvolvimento econômico regional. “Conseguimos aumentar de três para nove a média de empresas participantes nos editais”, diz Roni. Em um pregão eletrônico da prefeitura de Ponta Grossa (PR), em 2015, 32 fornecedores entraram na disputa. Como resultado, o edital, estimado em 22 milhões de reais, fechou pela metade do valor e exterminou as tentativas de sobrepreço — o tal carrinho de limpeza orçado em 20 000 reais saiu por apenas 418 reais.
O Observatório Social do Brasil avalia que seu conjunto de ações tenha rendido, desde 2013, uma economia de 3 bilhões de reais aos cofres das cidades nas quais atua. Na ponta de lança da rede estão profissionais liberais, professores, contadores, empresários, estudantes, donas de casa e aposentados que decidiram partir para a ação. Do “quartel-general” em Curitiba (PR), Roni coordena o time que dá suporte aos voluntários com orientação técnica, amparo tecnológico e capacitação na metodologia. A assistente social também acompanha a criação de outros observatórios pelo país. O processo envolve checar se os solicitantes têm ligações partidárias (o que os vetaria de imediato), estreitar os laços com o Ministério Público e conquistar o apoio do máximo de entidades do município, como sindicatos patronais, universidades e clubes de serviços, caso de Rotary e Lions. “Quanto maior a representatividade, mais forte o poder de ação e de pressão daquele observatório”, explica Roni. É desse apoio também que vêm os recursos para manter as estruturas locais.
Lidar diariamente com o descaso relacionado ao dinheiro dos contribuintes não é tarefa fácil, mesmo para Roni, há dez anos na direção executiva do OSB. “Vivo isso dia e noite, não tem como desligar”, diz. Ela confessa que muitas vezes precisa guardar para si a revolta perante casos de desonestidade evidente de políticos e empresários. Prefere combatê-los com dados. “O ataque e o estardalhaço puro e simples não vão resolver”, explica. “Nosso objetivo não é fazer uma caça aos corruptos, mas zelar pela qualidade na aplicação dos recursos públicos e construir um jeito novo de fazer política.”
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605