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Fera ferida

Na era da afirmação feminina, repórter automutilante vivida por Amy Adams em 'Sharp Objects' mostra que o trunfo de uma heroína pode, sim, ser sua fraqueza

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 6 jul 2018, 06h00 - Publicado em 6 jul 2018, 06h00
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  • Nem a beleza ruiva de Amy ­Adams disfarça o jeitão repulsivo da protagonista de Sharp Objects, série que estreia na HBO brasileira (e mundial) na noite de domingo 8. Camille Preaker, interpretada pela atriz, é de uma indigência existencial desoladora. Repórter de segunda de um jornal decadente de Chicago, ela se vira com pautas sobre brigas de casais e afins. Na redação do jornal, na espelunca onde vive ou dirigindo loucamente sua lata-velha, consome com sofreguidão garrafas de vodca e uísque. Isso quando não se rende à compulsão que já ameaçou sua vida — a automutilação. Nada poderia piorar? Sim, poderia: a perspectiva de voltar à cidade de origem é um fantasma que a assombra ao ser convocada por seu editor para investigar as conexões entre dois assassinatos de meninas na fictícia Wind Gap, rincão de 2 000 almas no sul americano. É como atravessar a porta rumo ao inominável: o labirinto de seus próprios tormentos psicológicos.

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    Sharp Objects reforça duas vertentes estimulantes da TV americana atual. À maneira de True Detective, série da mesma HBO que em duas temporadas narrou histórias diferentes, mas unidas pela atmosfera carregada, não é possível separar onde terminam os traumas pessoais de Camille e onde começam os horrores dos crimes que deve reportar: tudo se mescla num único pesadelo. Os corpos das meninas mortas são achados em posições esdrúxulas, com dentes arrancados. Os cidadãos, a princípio, acreditam ser obra de um psicopata de passagem por Wind Gap. Mas o monstro não só está entre eles: é a comunidade em si, com suas mesquinharias e esqueletos no armário, que parece alimentá-lo.

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    A tendência mais peculiar engrossada pela série é aquela que seu diretor, o canadense Jean-Marc Vallée, ajudou a desbravar com acidez requintada em seu sucesso anterior, Big Little Lies, de 2017 e também da HBO. Os dois trabalhos se debruçam sobre o comportamento das mulheres em amostragem quase, digamos, experimental: hábitats fechados em que o mínimo desequilíbrio faz eclodir a guerra — aberta ou velada — delas contra elas. Vividas por um time que vai de Nicole Kidman a Laura Dern, as personagens de Big Little Lies escancaram quem são de fato quando um crime faz o véu das aparências sociais rasgar-se.

    A nova empreitada de Vallée se baseia no thriller literário homônimo da americana Gillian Flynn, publicado no Brasil como Objetos Cortantes. Assim como o romance, a série apresenta um retrato da mulher bem menos airoso que aquele festejado por certo feminismo pop. Camille é uma anti-­heroína que personifica o avesso do tão surrado “empoderamento”: é al­coó­latra, sem rumo e pouco asseada. A perda de uma irmã na infância a tornou infeliz. E o que sobrou da família não ajuda. A meia-irmã posa de boa-­moça em casa, mas é uma diabinha de shorts curtos e patins nas ruas — além de, aos 13 anos, preencher perigosamente o perfil de vítima potencial do assassino à ronda. A mãe, a ricaça tipicamente sulista Adora (Patricia Clark­son), funciona como um espelho de Camille, mas também um superego fútil que só reitera como a filha não sabe lidar com sua natureza.

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    Sharp Objects é pródiga na oferta de bom suspense psicológico. Mas há outra utilidade além de entreter: as atuações cirurgicamente delineadas para passar o rodo em premiações como o Emmy. Mesmo diante da inverossimilhança em interpretar uma mulher caída e enfeada, Amy Adams vai bem. E a veterana Patricia confere tonalidades sádicas à mãe perua com segredos terríveis. A estranha humanidade das personagens mostra — talvez para horror das feministas — que a força da mulher pode estar, afinal, em suas fraquezas.

    Publicado em VEJA de 11 de julho de 2018, edição nº 2590

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