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Ela era uma voz de 2013

A eleição de Marielle foi uma conquista resultante da crise de representatividade que levou milhares de manifestantes a protestar nas ruas de todo o Brasil

Por Marcelo Freixo*
Atualizado em 4 jun 2024, 16h31 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00
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  • Lembro o dia em que vi Marielle Franco pela primeira vez, em 2002. Ela tinha apenas 23 anos e acompanhava a família na formatura da irmã, Anielle, que foi minha aluna e estava concluindo o ensino médio. Nós não fomos apresentados naquele dia. Só nos conhecemos mesmo algum tempo depois, num evento chamado Domingo É Dia de Cinema, realizado no Odeon, na Cinelândia, e que reunia estudantes de pré-vestibulares comunitários do Rio de Janeiro.

    Ali, Mari mais uma vez estava na companhia de Anielle, que me abordou e disse que a irmã gostaria de me conhecer mas estava acanhada — algo tão difícil de acreditar para quem a conheceu. Ela veio conversar comigo e no mesmo instante me dei conta de algo que me marcaria para sempre: Mari falava com os dentes, com o sorriso largo, intenso e gigante, do tamanho da mulher que ela já estava se tornando. Jamais me esquecerei daquele dia.

    Em meio a tanto sofrimento, continuo vendo seu rosto e sorriso, agora estampados nas ruas e muros da cidade, em todos os lugares, pintados no asfalto, nas calçadas, postes, camisas, corpos. Vejo a face de Mari em todas as faces carregadas de dor das mulheres negras e faveladas que têm lotado aquela mesma Cinelândia, palco da democracia brasileira, onde nos falamos pela primeira vez. São mulheres que veem seu rosto refletido no de Marielle: um espelho de Narciso às avessas, que revela a beleza da solidariedade e da empatia.

    Símbolo da luta por justiça, o rosto de Mari, que sempre nos mobilizou, agora também nos interpela. Impõe a todos nós, de forma contundente, uma urgente reflexão: que modelo de sociedade desejamos construir? A execução e as reações posteriores põem em xeque princípios éticos básicos e revelam uma linha de corte que estabelece de maneira clara e definitiva a fronteira entre democracia e barbárie, entre diálogo e fascismo, utopia e cinismo. Essa linha é a defesa dos direitos humanos, princípio civilizatório essencial que ela tão bem representa.

    A vida de Marielle não vale mais que outras vidas. Todas têm a mesma importância, como ela própria sempre defendeu. Mas o crime que a vitimou foi também um atentado político que feriu gravemente a democracia. Não só por ela ser vereadora da cidade do Rio de Janeiro eleita por 46 000 pessoas, mas por tudo o que ela é e representa num país de raízes escravocratas, racistas e machistas.

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    Os assassinos de reputação, que babam de ódio em busca do duplo homicídio — matam-se o corpo e a história —, não toleram que uma mulher negra, favelada, lésbica, de esquerda e defensora dos direitos humanos suba na tribuna de um parlamento carcomido por todos os vícios e erga sua voz diante dos herdeiros de coronéis, traficantes de escravos, preadores de índios e sinhozinhos de engenho, gente que pensa que mulheres negras ainda são mucamas e pertencem às senzalas e às cozinhas das casas-grandes. Mesmo sem proferir uma palavra, apenas com a força de sua presença, seus cabelos crespos, turbante colorido, pele negra e gestos altivos, Marielle abriu um rombo gigante nos muros do status quo. E pagou por isso, mesmo depois de ser eliminada.

    Ficou fácil perceber a linha que divide civilização de barbárie após a execução da vereadora. Muito bem paga com dinheiro público para promover a Justiça, em vez disso, a desembargadora Marilia Castro Neves se comportou como uma sinhá de tribunal e revelou-se uma justiceira raivosa. De maneira vil, ela mentiu — e cometeu um crime — ao afirmar nas redes sociais que Marielle estava “engajada com bandidos” e havia sido eleita por uma facção criminosa.

    O deputado federal Marco Feliciano, do Podemos, foi ainda mais sórdido. Num programa de rádio, alguns dias após a vereadora ter sido assassinada com quatro tiros na cabeça, ele zombou: “Há pouco tempo fiquei sabendo que deram um tiro num esquerdista no Rio de Janeiro e levou uma semana pra morrer, porque a bala não achava o cérebro”. É estarrecedor que um deputado se sinta à vontade para tripudiar sobre uma execução e desrespeitar a dor de uma família. Para piorar, a declaração foi tratada como piada no programa.

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    Houve mais episódios lamentáveis. Um padre foi xingado ao homenagear a parlamentar durante uma missa, na Paróquia da Ressurreição, em Ipanema. E ali perto, em Copacabana, um policial rodoviário federal ameaçou com uma pistola frequentadores do bar Bip Bip depois que eles fizeram um minuto de silêncio em memória de Marielle.

    Essas manifestações expressam uma crise ética e civilizatória que faz com que um setor da sociedade seja incapaz de reconhecer e respeitar a dor do outro, principalmente se este for oriundo dos segmentos historicamente subalternos e desafiar a ordem estabelecida, como fez a vereadora. Diante disso, para essas pessoas, só o ódio e a desumanidade são possíveis. Trata-se de uma violência sem tamanho não só contra Marielle, mas também contra todas as mulheres negras e faveladas que recusam o lugar que sempre lhes foi reservado.

    Contudo, o alto volume com que essa direita raivosa se estrebucha é um sintoma do seu desespero diante do avanço do novo, da agenda progressista que afirma a centralidade da defesa dos direitos humanos e questiona privilégios, valores que Marielle tão bem representou. Sim, eles gritam, difamam e caluniam porque não suportam ver o mundo proclamar: Marielle presente! Não toleram ver tantas sementes germinando da história de uma mulher negra e favelada. E nesse arroubo desesperado de fúria se desmoralizam.

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    A eleição de Marielle foi uma das principais conquistas resultantes da crise de representatividade que levou às jornadas de 2013. Filha de migrantes paraibanos, a vereadora nasceu e cresceu na favela da Nova Holanda, na Maré. Após passar por um pré-vestibular comunitário, conquistou uma bolsa na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) e se tornou socióloga. Posteriormente, fez mestrado em administração pública na Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2009, começou a coordenar a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, presidida por mim. Assim, ampliamos a agenda da comissão, incluindo na pauta a assistência a familiares de policiais assassinados, algo que até então não era realizado.

    Por sua história de vida e militância, Marielle soube como ninguém transitar entre o universo institucional, da burocracia do Estado, e os movimentos populares. Fez política com afeto. Conseguiu estabelecer vínculos e diálogos construtivos com a favela e com autoridades policiais, sem abrir mão de nossos princípios e sempre em defesa da dignidade humana. Entretanto, Mari é mais do que isso. Ela é exemplo e inspiração para quem luta e acredita que o lugar da mulher negra da favela é, sim, o Parlamento, é qualquer espaço de poder.

    Espaços que continuarão a ser ocupados, porque vejo o rosto de Mari nos rostos que tomam as ruas do Rio. Nas faces que se erguem para dizer que não aceitamos a violência e a intimidação como métodos políticos. Vejo a boca de Mari nas bocas que gritam que o medo não derrotará a esperança. Vejo em tantos olhos o seu olhar firme, mostrando que enfrentaremos e derrotaremos essa ameaça. E que a barbárie não triunfará.

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    * Marcelo Freixo, 50 anos, é professor de história e deputado estadual pelo PSOL do Rio de Janeiro

    Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575

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