Uma menina com a cabeça repousada sobre a carteira, de um lado; um menino fazendo esforço para não pegar no sono, de outro. Na maior parte do tempo a classe segue quieta, emudecida pelo desinteresse. Eis que a professora chama a turma para uma atividade que descongela todo mundo, arrancando demonstrações de euforia de crianças de 6 e 7 anos. Elas descem a uma sala simples, as paredes descascadas, para ter uma aula em frente a uma tela de TV ligada a um laptop. Quem pensou “lá vem a escola estimular o que não devia” errou: o desenho animado projetado na televisão é cheio de música, jogos e, sim, matéria curricular. Enquanto acompanham a história e seus personagens, os alunos são desafiados a reconhecer rimas, números, letras. Somam e subtraem. Distinguem esquerda e direita. O acerto é recompensado com uma subida de nível no jogo. Pronto. A classe se transformou. “Adoro quando chega a hora da aula do computador”, diz Cauã Moreira, 6 anos, que grita as respostas e gosta de tocar no teclado do laptop.
Numa terça-feira de maio, quem estava no comando da classe era Rafael Parente, 41 anos, o inventor dessa plataforma digital, que batizou de Conecturma. Conhecendo todas as potencialidades do programa, o finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Educação demonstrou a professores e alunos quanto uma ideia simples e barata, sem a pirotecnia que costuma vir casada à tecnologia na sala de aula, pode sacudir a realidade em uma escola pobre, como o colégio municipal Darcy Ribeiro, em Aparecida de Goiânia, Goiás. Parente, que passa a maior parte do tempo envolvido na ciência da educação e na melhor forma de aplicá-la com o empurrão de novas ferramentas, parecia bem à vontade na condição provisória de professor. “Conhecer a realidade da sala de aula é vital para criar meios de mudá-la”, afirma.
O Conecturma, que começou a ser implantado em 2015, abrange da educação infantil ao 5º ano do ensino fundamental e já chega a escolas públicas de 81 municípios em sete estados. Está mais avançado justamente em Goiás, onde o plano é atingir 100% dos colégios estaduais, seguido do Paraná. Em Goiás, Parente primeiro se apresentou como voluntário para dar nova roupagem aos velhos núcleos de tecnologia, fincados na ideia da aula de informática pura. A então secretária de Educação, Raquel Teixeira, entendeu estar diante de alguém capaz de revirar o padrão de sempre. “Rafael é um idealista”, define Raquel.
Antes de se tornar um inovador na área da educação, Parente flertou com outros caminhos. O mais velho de cinco irmãos, brasiliense, ele lecionou inglês dos 17 aos 24 anos, foi voluntário em uma creche comunitária, iniciou uma graduação em economia e emendou o curso de comunicação social, que concluiu sem convicção. Um dia, a certeza lhe veio, mas apontando para outra direção. “Tive a clareza de que o que queria mesmo era trabalhar para melhorar a educação”, lembra. Foi à mãe contar a novidade. Ela, a princípio, frustrou-se. Sonhava vê-lo médico. O pai, Pedro Parente, ex-presidente da Petrobras, ponderou: “Se é isso o que quer, vá estudar”. O mestrado e o doutorado em educação, ambos em Nova York, viriam em sequência.
Muita gente se arrisca no ramo de tecnologia para o ensino, mas a maioria não consegue alçar grandes voos. O principal equívoco é imaginar que o computador tem protagonismo e vai sanar sozinho todos os males da educação. A ideia de Parente é diferente. O Conecturma se alia ao currículo, funcionando como um motor para atiçar a curiosidade e se afastar da esgarçada fórmula de lousa e giz. E não se encerra na aula: professores e alunos ganham livros que repassam a mesma história. Os mestres têm com isso um roteiro para ensinar e os alunos, mais combustível para aprender. Os professores são treinados para fazer a costura entre o novo e o velho. “Um dos méritos do projeto é exatamente envolver os professores. Sem isso, o resultado não vem”, avalia o inglês David Albury, que foi conselheiro do premiê Tony Blair e criador do Programa Global de Líderes da Educação, do qual Parente faz parte.
“Conhecer a realidade da sala de aula é vital para criar meios de mudá-la”, diz o educador
O embrião do Conecturma está em uma experiência anterior, que se iniciou no encontro com a então secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, Claudia Costin. Em uma reunião em 2009, ela falou sobre como as pessoas superestimam o poder da tecnologia nas questões do ensino. De sua cadeira, Parente foi enfático: “O que estamos vendo é muito mais do que uma nova tecnologia, mas algo que vai transformar radicalmente a maneira de ensinar e aprender”. Claudia se interessou em saber mais o que pensava aquele jovem, convidou-o para uma conversa e, depois, para a secretaria. Ali, Parente foi vital para pôr de pé a Educopédia, a primeira plataforma digital para o ensino básico que envolveu uma rede pública inteira no Brasil. Deu certo: 76% dos alunos disseram que suas notas haviam aumentado pós-Educopédia.
Nada nesses materiais é obra do acaso, mas de um mergulho fundo na neurociência, que esclarece como as pessoas assimilam conhecimento, e em experiências bem-sucedidas realizadas no Canadá, na Austrália, na Alemanha e nos Estados Unidos. Alguns resultados do seu projeto: 100% das crianças expostas à sua plataforma começaram a ler no 2º ano, o que muitas vezes não ocorre na esfera do ensino público. Em Aparecida de Goiânia, Arildo Nascimento, diretor da escola Darcy Ribeiro, enxerga o início de uma virada. “É emocionante ver crianças tão pobres e sem estímulo desenvolvendo tão bem leitura, escrita e raciocínio lógico.” Que o exemplo se espalhe.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598