A cultura tem sido historicamente o rio onde deságuam as crises econômicas brasileiras. Quando o dinheiro público e privado começa a escassear, são os projetos arquitetônicos, artísticos ou literários os primeiros a ir para o sacrifício. O Brasil, no entanto, encontra-se hoje na contramão dessa tendência. Nos próximos cinco anos, nada menos que doze centros culturais vão despontar em cinco estados brasileiros. Só até o fim deste ano, cinco projetos do gênero terão sido inaugurados no país: Manaus ganhará o Museu Olímpico e São Paulo, além da Japan House, aberta em maio, passará a contar com as novas unidades do Instituto Moreira Salles, do Sesc Paulista e do Centro Cultural Fiesp. Em 2018, a lista deve crescer com a abertura do Museu Judaico, também em São Paulo, e do Museu da Imagem e do Som (MIS) no Rio. Outros três projetos — o Museu da Natureza, no Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, o Museu da Cidade, em Manaus, e a Praça Cívica, em Goiânia — deixarão de ser maquete para virar realidade até 2022. Os únicos ainda sem prazo para inauguração são o Museu da Escravidão e o Museu do Holocausto, ambos no Rio.
Esses centros marcam o início de uma nova geração de espaços culturais que fogem do modelo tradicional de museu com acervo próprio e exposições periódicas. Saem as coleções centradas em períodos históricos e ofertadas por benfeitores e entram a tecnologia, a interatividade e as exposições itinerantes. O modelo das grandes coleções, dizem os especialistas, envelheceu e vem sendo substituído pelos chamados “museus de identidade”, aqueles que versam sobre aspectos culturais específicos.
Um dos primeiros do gênero foi o Museu Cais do Sertão, no Recife, que gira em torno da cultura sertaneja e da obra de Luiz Gonzaga. Foi aberto em 2014. No ano seguinte, foi a vez do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, que explora os caminhos da ciência em um edifício de mais de 200 milhões de reais projetado pelo arquiteto espanhol Santiago Calatrava; e do Museu de Congonhas, em Minas Gerais, voltado para a obra de Aleijadinho (1738-1814).
O Museu da Natureza, no Piauí, seguirá a mesma trilha temática. Localizado em meio à área de sítios arqueológicos do Parque Nacional da Serra da Capivara, ele vai detalhar as transformações geológicas, climáticas e biológicas ocorridas no mundo ao longo das eras. A proposta partiu da arqueóloga Niède Guidon. O Museu da Cidade, em Manaus, pretende explicar o surgimento da capital amazonense a partir dos diversos fluxos migratórios. Já a Praça Cívica de Goiânia, em Goiás, reunirá um conjunto de museus, além de casas de espetáculo e biblioteca, como parte de um plano com vistas a revigorar a região. A reforma realizada dois anos atrás deu vida nova a prédios históricos, mas não conseguiu fazer com que o lugar fosse frequentado pela população.
Em São Paulo, o segundo semestre do ano consolidará a região da Avenida Paulista como a primeira museum mile brasileira (a expressão, que significa “milha de museus” em inglês, é usada para definir, por exemplo, a Quinta Avenida, em Nova York, onde há diversos museus). Em maio último, a Paulista passou a sediar a Japan House, vitrine do Japão contemporâneo instalada em um edifício assinado por Kengo Kuma, expoente da arquitetura atual. Até o fim do ano, a avenida deve ganhar uma nova unidade do Sesc e outra grande estrela: o Instituto Moreira Salles (IMS). A sede renovada do IMS no Rio de Janeiro foi inaugurada no fim de 2015. A unidade de São Paulo está prevista para abrir no próximo dia 22 de agosto, com uma exposição inédita da série de fotografias The Americans, do fotógrafo suíço Robert Frank (o artista, que completou 92 anos, estará presente na mostra). O projeto do instituto, que conta com um acervo de 2 milhões de fotografias, é do escritório de arquitetura Andrade Morettin.
A notícia não tão boa assim é que o florescimento de tantos museus em plena crise não sugere o fim do paradigma que põe a área cultural entre as primeiras vítimas de qualquer abalo econômico no Brasil. A máxima, infelizmente, continua valendo. O que ocorre hoje é que alguns dos maiores empreendimentos em curso contam com financiamento externo (caso da Japan House, um investimento do governo japonês) ou privado (situação do Instituto Moreira Salles). Quanto aos demais centros culturais, a maioria foi planejada entre 2010 e 2013, quando a crise não era aguda. Seja como for, uma crise com boom de museus será sempre melhor que uma crise sem eles. Como diz Flávio Pinheiro, superintendente do IMS, a cultura, muitas vezes, não está nos planos de ninguém. Mas é uma forma de reagir às adversidades.
“Cultura é uma forma de catarse”
Curador de alguns dos principais centros culturais do Brasil, incluindo o Museu da Língua Portuguesa e a Japan House, o diretor artístico Marcello Dantas acaba de ser escolhido para ser o curador de arte do Aeroporto de La Guardia, em Nova York. De Tóquio, ele falou a VEJA.
Em crises, há uma demanda diferente do público por cultura?
A cultura é uma forma de catarse em momentos ruins, em que as pessoas se alinham com os próprios valores. Mas o fato de estarem surgindo tantos museus no Brasil agora também tem a ver com o contexto político. Depois do impeachment, veio uma certa previsibilidade, e as coisas começaram a andar. Ainda que, hoje, alguma incerteza tenha voltado, há projetos que estão sendo concluídos.
O museu de hoje é o mesmo de antigamente?
Não. Antes, primeiro se colecionavam obras e, depois, montava-se o museu. Hoje, o que se tem é uma manifestação que acontece de forma oral, visual ou tátil. O modelo de grandes coleções envelheceu e foi substituído pelos chamados museus de identidade, sobre aspectos culturais específicos.
Por que a expressão “museu de identidade”?
Porque são museus que não expõem algo colecionável, mas cultura imaterial, muitas vezes ligada à identidade de um povo ou um grupo. É um tipo de museu capaz de olhar para a cultura viva e mostrá-la às pessoas. Nos últimos vinte anos mais de 1 000 museus foram criados na China. Ali houve ditadura, revolução cultural, cinquenta anos de ostracismo e renascimento econômico. Os museus de agora são uma forma de o chinês se enxergar como ele realmente é depois das mudanças. Isso também acontece em países como Argentina, Colômbia e México.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540