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Confidências do inconfidente

Pesquisador brasileiro descobriu, em Portugal, o prólogo inédito que o poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga escreveu para seu clássico 'Marília de Dirceu'

Por Paula Sperb
Atualizado em 1 dez 2017, 06h00 - Publicado em 1 dez 2017, 06h00

O próprio imperador dom Pedro II estava na sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1872, quando se anunciaram notícias da província de Minas. Assim informa a ata do encontro: “Uma caixinha forrada de veludo contendo os instrumentos cirúrgicos de que se serviu Tiradentes” havia sido encontrada por lá. Outra relíquia relacionada à Inconfidência Mineira fora descoberta. Diz a ata: “Um volume manuscrito, com todas as probabilidades, atribuído ao desditoso Gonzaga”. O “desditoso” era o poeta português Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), que fora extraditado para Moçambique em 1792, por ter partici­pado do movimento mineiro contra Portugal. No manuscrito mineiro, haveria um prólogo para a segunda parte de Marília de Dirceu, a coleção de poemas amorosos que fez a fama literária do poeta inconfidente. O manuscrito do poeta foi considerado naquela reunião como “precioso documento de nossa história e de nossa literatura” — mas, ao que parece, nunca foi editado. O tal prólogo não consta das primeiras edições de Marília de Dirceu, no fim do século XVIII, nem das inúmeras reedições dos séculos posteriores. Mas um museólogo carioca radicado em Portugal, Luiz Guilherme Machado, achou uma cópia desse documento perdido da história e da literatura do Brasil.

Machado não estava procurando por esse documento específico. Mas, em visita à Olisipo, livraria especializada em raridades, em Lisboa, o livreiro José Ferreira Vicente — morto no início do ano — apresentou-lhe um conjunto de quatro códices manuscritos, com mais de 1 500 páginas no total. Eram parte da coleção do frei franciscano Antônio de São Jacinto Almeida, de quem pouco se sabe. O religioso copiava, naquelas folhas, os poemas que mais lhe apraziam, prática muito comum entre letrados da época. “Coleção de várias obras poéticas extraídas de diversos autores pela curiosidade de F.A. de S.J.A”, anunciava o copista na folha de rosto, assinando com suas iniciais. Estavam ali outros contemporâneos de Gonzaga, como o português Bocage e o carioca Alvarenga Peixoto (que também participou da Inconfidência). O livreiro vendeu o lote pelo equivalente a 4 000 reais. “Comprei sem saber. Em casa, lendo com calma, encontrei o prólogo, que é um texto relativamente extenso. Percebi que era material desconhecido”, diz Machado. Os manuscritos do franciscano estão datados de 1786 a 1795. A segunda parte de Marília de Dirceu seria publicada, em Portugal, só em 1799. Machado supõe que o prólogo não foi publicado por dificuldades editoriais — ou por censura. A descoberta de Machado permanece inédita, mas já circula discretamente nos meios letrados. O crítico e poeta Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma não ter dúvidas de que o prólogo é realmente de Gonzaga: “Está inteiramente de acordo com o espírito do livro”.

(Acervo particular/Divulgação)

Embora Gonzaga tenha nascido no Porto, Marília de Dirceu, pelas circunstâncias históricas, é aceito como obra fundamental da literatura brasileira. É uma coletânea de versos que um poeta-pastor (figura convencional do arcadismo), Dirceu, dedica à sua amada, Marília — uma versão idealizada do amor de Gonzaga, ouvidor em Vila Rica, por Maria Doroteia Joaquina de Seixas. Os noivos marcaram o casamento para o fim de maio de 1789, mas Gonzaga foi preso uma semana antes, por participar da conspiração contra a coroa portuguesa.

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A segunda parte de Marília de Dirceu foi composta na Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, onde o poeta foi encarcerado. “São impressionantes a firmeza e a sabedoria reveladas nas liras da prisão. Nem um momento de desmoralização ou renúncia; sempre a certeza de sua valia, a confiança nas próprias forças”, afirma Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira, obra que revalorizou a poesia de Gonzaga e de seus companheiros árcades.

O prólogo começa com o que parece um eco do soneto Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, de Camões: “Muda-se de instante a instante o nosso estado”. Gonzaga diz que alguns de seus poemas foram feitos no “estado de amante, antes da prisão”, enquanto outros foram escritos já preso — mas ainda no estado de amante. O poeta afirma ao mesmo tempo sua inocência na conspiração e seu amor por Marília/Doroteia: “Dirás que eu podia pôr essa defesa (de sua inocência) no prólogo de outra obra de mais interesse. Não a devia pôr, senão nesta mesma obra. O amor que me obrigou a fazê-la, foi o que me fez aparecer na figura de réu”.

Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559

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