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Cansados da solidão

Em dois anos, mais de duas dezenas de padres católicos migraram para a Igreja Anglicana. Obrigação do celibato é, quase sempre, o motivo da mudança

Por João Batista Jr. Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h42 - Publicado em 29 jun 2018, 06h00
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  • Todo aquele que é ordenado padre faz três votos fundamentais e obrigatórios até o fim da vida religiosa: a obediência, a pobreza e a castidade. O objetivo é que o corpo, frágil em sua essência, não sirva às necessidades pessoais, mas tão somente à vocação de pregar a palavra de Deus. A prática, no entanto, mostra que sobretudo o terceiro item configura um desafio ao qual muitos homens de fé terminam por sucumbir. Em toda a história da Igreja Católica, 39 papas se casaram ou tiveram filhos — incluindo o primeiro deles, Pedro. A Bíblia tem passagens que mencionam a família do primeiro bispo de Roma: “E Jesus, entrando em casa de Pedro, viu a sogra deste acamada, e com febre” (Mateus, 8:14). Dos 39 papas que constituíram família, mais da metade (outra vez, Pedro entre eles) o fez sem atentar contra o decoro do sacerdócio. Isso porque a primeira menção ao celibato se deu só no início do século IV, no Concílio Regional de Elvira, na Espanha. “A regra nasceu da constatação empírica de que os clérigos sem família tinham maior dedicação à Igreja”, diz Francisco Borba Ribeiro Neto, sociólogo, biólogo e coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-­SP).

    Na Idade Média, a situação ganhou novos contornos. A castidade passou a ser, além de uma medida prática, um instrumento para atender às conveniências de uma instituição cada vez mais rica. Ao evitar que religiosos viessem a ter herdeiros, a Igreja também reduzia as possibilidades de ver dissipado o seu crescente patrimônio. O Segundo Concílio de Latrão, em 1139, ampliou o celibato para todo o Ocidente. Séculos depois, em 1563, no Concílio de Trento, estabeleceu-se que o rompimento do voto de castidade devia ser punido com a excomunhão. O celibato, como expressão de dedicação à divindade, existe também entre os monges budistas. Mas, entre as grandes religiões, a única a exigir a abstinência sexual é a católica romana. O judaísmo, o islamismo, as igrejas protestantes e evangélicas permitem a construção da família entre seus líderes. Mesmo os católicos orientais, como os maronitas, aceitam a ordenação de homens casados, com a única ressalva de que não podem ascender a bispos.

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    “O celibato é hipocrisia”, Benedito Alves, de São Paulo (SP). “A exigência do celibato leva o religioso a viver na hipocrisia por uma razão simples: vai contra a natureza humana. A minha primeira relação sexual se deu ao 18 anos, no seminário. Sofri um conflito o tempo todo por pedir aos fiéis algo que eu mesmo não cumpria. Moro há seis anos com meu companheiro e minha mãe. Hoje, sou livre para ser gay. Celebrei minha última missa na Igreja Católica no Natal de 2017. No dia seguinte, minha excomunhão saiu no Facebook. Desde então, estou na Catedral Anglicana. Amigos católicos disseram que o batismo que eu celebrar não terá valor para Deus.” (Egberto Nogueira/Imã Foto Galeria/.)

    Pois o não cumprimento do celibato, esse voto que se aprofundou com o correr dos séculos, tem sido o motor de uma crescente revoada de religiosos católicos para outras igrejas. A Catedral Anglicana de São Paulo, por exemplo, fundada em 1873, tinha apenas três reverendos até 2016. No espaço de dois anos, saltou para 23 — e todos, sem exceção, são egressos da Igreja Católica. Outros vinte religiosos devem se somar a eles até o fim do ano, fazendo o número pular para 43. Para a grande maioria desses ex-padres, o fracasso em seguir as regras do celibato foi fundamental para a sua despedida do catolicismo. É o caso de Dionísio Pereira, de 49 anos.

    Carismático e eloquente, sua boa atuação no comando da Catedral de Pouso Alegre, em Minas Gerais, fez com que passasse a ser cogitado para o posto de bispo. O sucesso, porém, lhe trouxe mais dissabores que recompensas. Segundo conta, colegas enciumados começaram a tecer contra ele um rosário de intrigas — que, acompanhado de uma investigação sobre sua vida particular, resultou na revelação de que era pai de um menino, fruto de seu relacionamento com uma ministra da eucaristia. Diante do escândalo, Pereira foi expulso da Igreja — hoje é reverendo da Catedral Anglicana. “A Igreja Católica acoberta casos de pedofilia, mas põe na Inquisição um padre que teve filho com uma mulher adulta”, queixa-se (leia outras histórias de ex-padres ao longo da reportagem).

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    “Por amor, abandonei a batina”. Jailson sandes, de Bacabal (MA). “Nasci em uma cidade carente, onde ter um padre na família dá status. Tenho vocação religiosa, mas minha mãe teve um peso na minha decisão de ir para o seminário. Mantive o celibato por mais de quinze anos, até me apaixonar, há seis anos. Ela era casada e tem dois filhos. Frequentava a minha paróquia à época. Tentei negar meus sentimentos ao me mudar para São Paulo para morar em um monastério. Mas foi em vão. Mantivemos contato. Em março deste ano, abandonei a batina. Estamos morando juntos há três semanas. Não podia ir contra a minha felicidade. Meus pais não sabem que tenho uma companheira, espero que respeitem.” (Egberto Nogueira/Imã Foto Galeria/.)

    Foi também uma história de amor que terminou por separar Jailson Sandes da Igreja Católica. Há seis anos, ele se apaixonou por uma frequentadora de sua paróquia, casada e mãe de dois filhos. Temeroso das consequências, tentou esquecer a mulher mudando-se para o Convento São Francisco, em São Paulo. Em vão: há três meses, ela deixou o marido e ele abandonou a batina. Os dois agora vivem juntos na capital paulista — onde ele se tornou reverendo da Catedral Anglicana. Desfecho diferente teve a história do também ex-padre e hoje reverendo da Catedral Anglicana Benedito Alves, de São Paulo. Ele conta que quebrou o voto de celibato aos 18 anos, ainda no seminário, e, desde então, sofreu o conflito de viver uma situação condenada por sua Igreja. Quando já morava havia cinco anos com seu companheiro, decidiu que era hora de deixar a hipocrisia. Pediu para sair. Já Wilson Vitoriano, ex-padre de Jundiaí transformado em reverendo, atribui sua deserção da Igreja Católica a uma razão em nada relacionada ao celibato. Para ele, os cultos nas paróquias não acompanharam a mudança do mundo, e quem os celebra continua achando que tem a obrigação de lhes conferir sobriedade excessiva. Vitoriano diz ter sido excomungado por suas missas, “alegres”, parecerem coisa de “evangélico pentecostal”.

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    “Fui expulso por ter um filho”, Dionísio pereira, de Pouso Alegre (MG). “Fui vice-reitor de seminário e pároco da Catedral de Pouso Alegre. A medida que meu trabalho se destacava, fui cotado para assumir o cargo de bispo. Foi quando começou meu martírio. Padres invejosos, de olho em status e poder, realizaram uma devassa na minha vida. Eles descobriram em um cartório a cópia da certidão de nascimento do meu filho, o André, hoje com 12 anos. Fui expulso. A igreja faz vista grossa para padres que são pais, desde que não subam na hierarquia. Tudo tem o lado positivo. Agora vivo a paternidade às claras.” (Egberto Nogueira/Imã Foto Galeria/.)
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    O crescimento anglicano tem sido observado em países como Estados Unidos, sobretudo entre os jovens. O motivo é a cartilha menos conservadora da Igreja, que aceita, por exemplo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Ela tem pautas atuais, os cultos são ágeis e sempre abertos às minorias”, diz o sociólogo Ribeiro Neto. “Aceitamos divorciados, homossexuais, adúlteros e todos aqueles para quem o Vaticano vira as costas”, diz Aldo Quintão, reverendo-chefe da Catedral Anglicana de São Paulo.

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    “Fui perseguido e excomungado”, Wilson Vitoriano, de Jundiaí (SP). “Faço orações de cura e libertação, o chamado exorcismo. A minha paróquia atraía 8 000 pessoas por semana. Mas fui excomungado há dois anos em um ato de perseguição. Padres enciumados me acusaram de parecer evangélico neopentecostal. Isso porque Roma prefere missas com cara de velório e eu não acho que culto tem de parecer enterro. Recebi uma carta do Vaticano pedindo para voltar, mas recusei. Recolhia 100 000 reais em dízimo por mês, talvez esse fato tenha pesado para eles.” (Egberto Nogueira/Imã Foto Galeria/.)

    O anglicanismo — fundado pelo rei Henrique VIII (1491-1547), que rompeu com Roma depois de ver negado pelo papa seu pedido de anulação do casamento com a rainha Catarina de Aragão para unir-se a Ana Bolena — prevê a observância dos sete sacramentos, a crença nos santos e na Santíssima Trindade. Mas seus sacerdotes não estão obrigados ao celibato, defendem o uso de contraceptivos e realizam casamentos entre divorciados. Em 2009, o papa Bento XVI autorizou que reverendos anglicanos, casados e com filhos, pudessem ser ordenados padres. Desde então, da mesma forma que ex-padres são bem-vindos à Igreja Anglicana, ex-reverendos podem migrar para a Católica. Não surpreende, porém, que, por enquanto, esse último fluxo não tenha a intensidade do primeiro.

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    https://www.youtube.com/watch?v=mpKyIyMinTs

     

    Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589

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