Num país que teima em não cumprir as leis, o protagonismo e o ativismo cada vez maior do Supremo Tribunal Federal (STF) não surpreendem mais. Na última semana de trabalho antes do recesso de fim de ano, os ministros da corte anunciaram uma série de decisões que trazem embutidas uma boa e várias más notícias. Primeiro, a boa: Paulo Maluf, ícone da corrupção nacional, foi finalmente condenado e preso, depois de um processo que durou vinte anos. Agora, as más: o pacote resultou na libertação de investigados da Lava-Jato, no arquivamento de acusações contra um punhado de políticos e na proibição das chamadas conduções coercitivas, expediente que vem sendo largamente usado pela Polícia Federal e pelo Ministério Público ao longo de quase quatro anos da operação. Nas conduções coercitivas, o suspeito, por ordem judicial, é levado à força para depor. As canetadas do STF são mau presságio num ano em que o combate à corrupção foi alvo de múltiplos ataques.
Algumas das decisões mais preocupantes tiveram origem na Segunda Turma do STF, na qual se concentram os casos da Lava-Jato. Na segunda-feira 18, o ritmo foi ditado pelo ministro Gilmar Mendes. Depois de um rosário de reprimendas aos investigadores, o colegiado mandou para o arquivo três denúncias apresentadas nos últimos dois anos pelo então procurador da República, Rodrigo Janot. Numa delas, o senador Benedito de Lira e seu filho, o deputado Arthur Lira, ambos do PP de Alagoas, eram acusados de receber dinheiro do doleiro Alberto Youssef para pagar dívidas de campanha. Em outra, o deputado José Guimarães, do PT do Ceará, era apontado como destinatário de 97 000 reais em propina para ajudar uma empreiteira a obter empréstimo no Banco do Nordeste. Na terceira denúncia, o deputado Dudu da Fonte, do PP de Pernambuco, era acusado de liderar uma ação clandestina para atrapalhar a CPI da Petrobras, em 2009. Nos três casos, com votos de Gilmar e do ministro Dias Toffoli, prevaleceu a tese de que as acusações eram baseadas apenas no testemunho de delatores e, por isso, não mereciam virar processo.
“Políticos com foro ficarão impunes”, queixou-se, em tom de resignação, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da Lava-Jato em Curitiba. Na mesma segunda-feira, dessa vez em decisão individual, Gilmar Mendes concedeu habeas-corpus para que Adriana Ancelmo, ex-primeira-dama do Rio, voltasse a cumprir em seu apartamento de 400 metros quadrados a pena de dezoito anos a que foi condenada, sob a acusação de beneficiar-se de propinas arrecadadas pelo marido, o ex-governador Sérgio Cabral. É um direito dela, está na lei, mas, infelizmente, é acessível apenas a quem tem bons advogados. Na mesma leva, Mendes liberou da cadeia empresários apanhados pelo braço fluminense da Lava-Jato e suspendeu um inquérito que investigava o governador do Paraná, o tucano Beto Richa, suspeito de crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Por fim, na quarta-feira, como presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro soltou o ex-governador do Rio Anthony Garotinho, que estava preso na penitenciária de Bangu.
Em decisão do plenário, os processos contra integrantes da cúpula do PMDB denunciados junto com o presidente Michel Temer saíram das mãos do juiz Sergio Moro. O ministro Fachin, o relator da Lava-Jato, defendia a tese de que políticos que tivessem perdido o foro privilegiado, como Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima, deveriam ser julgados por Moro. Mas o plenário decidiu que os processos devem ser enviados à Justiça Federal de Brasília. “O populismo judicial é responsável por esse tipo de assanhamento”, disse Gilmar Mendes, em mais um petardo contra a Lava-Jato. Ele teve de ouvir a voz sensata do ministro Luís Roberto Barroso: “Há um país que se perdeu pelo caminho, naturalizou as coisas erradas, e nós temos o dever de enfrentar isso e de fazer um novo país, de ensinar às novas gerações que vale a pena ser honesto, sem punitivismo, sem vingadores mascarados, mas também sem achar que ricos criminosos têm imunidade, porque não têm”.
O pacote de fim de ano do STF não atingiu apenas a Lava-Jato. O ministro Ricardo Lewandowski suspendeu os efeitos da medida provisória que empurrava para 2019 um reajuste nos salários do funcionalismo federal e aumentava de 11% para 14% a contribuição previdenciária dos servidores. A medida era uma tentativa do governo de equilibrar as contas públicas em 2018. O adiamento resultaria em economia de 4,4 bilhões de reais e o aumento da alíquota da contribuição elevaria a arrecadação em 2,2 bilhões. A decisão de Lewandowski abre, portanto, um rombo de 6,6 bilhões nas contas da União. O governo vai recorrer, mas qualquer mudança só ocorrerá a partir de fevereiro, quando termina o recesso dos ministros — e o funcionalismo, a essa altura, já terá recebido o reajuste salarial.
Publicado em VEJA de 27 de dezembro de 2017, edição nº 2562