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Bonecas poderosas

A nova Barbie Frida Kahlo demonstra que o típico brinquedo de menina está tendo de se adaptar a uma infância mais curta e, sim, mais feminista

Por Luisa Bustamante Atualizado em 2 abr 2018, 13h51 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00

Era uma vez uma infância em que meninas passavam os dias brincando de boneca e praticando para ser mãe — o destino manifesto das mulheres de então. Nesse contexto nasceu, em 1959, aquela que viria a ser a mãe de todas as bonecas: a Barbie, que, no lançamento, tinha uma versão loira e  outra morena, mas ambas já dotadas do célebre corpinho de medidas impraticáveis. Quase sessenta anos depois, a história é outra. A chegada às lojas neste mês de uma Barbie inspirada na artista mexicana Frida Kahlo, símbolo da mulher livre, forte e dona do seu nariz, mostra que as bonecas ainda são o brinquedo preferido das meninas, mas as meninas mudaram.

A própria Mattel, uma das maiores fabricantes de brinquedos do mundo, reconheceu a transformação de seu mercado ao anunciar no Twitter a linha feminista de Barbies (além de Frida, são inspirações a aviadora Amelia Earhart, a primeira mulher a sobrevoar o Atlântico, e a matemática da Nasa Katherine Johnson). “Com 86% das mães preocupadas com o tipo de exemplo a que suas filhas estão expostas, nós nos comprometemos a jogar luz sobre mulheres empoderadas”, diz a mensagem, baseada em dados de uma pesquisa interna.

Com prejuízo líquido de 280 milhões de dólares no último trimestre de 2017 (o do Natal e da Black Friday), a Mattel tem motivos para se preocupar. Depois de fincar os pezinhos durante onze anos no topo, a Barbie perdeu em 2014 o posto de campeã de vendas para a versão boneca de Elsa e Anna, licenciadas da animação Frozen, da Disney. Além de competir com personagens de cinema, a Barbie também vem tendo de lidar com a mudança na própria concepção de beleza, fruto do movimento mundial de afirmação feminina. Uma pesquisa da consultoria Let’s Play, que acompanha o comportamento e os hábitos de consumo da nova geração, mostra que, há dez anos, 80% das meninas diziam que as mais bonitas da escola eram as loiras, magras, de cabelos longos — tipo uma Barbie. Hoje, a maioria (67%) afirma que bonito é ter atitude e admira personagens com perfil transgressor (76%). “A Mattel percebeu que as meninas se sentiam fora do padrão de beleza sustentado pelas bonecas tradicionais”, diz Eduardo França, coordenador do MBA de estratégias em ciência do consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing.

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COLEÇÃO – Comercial das LOL no YouTube: modelos raros são oferecidos pela fortuna de 5 500 reais na internet (//Divulgação)

Além de olharem para as bonecas de forma diferente, as meninas estão deixando de ser criança mais precocemente. “Nos cinco últimos anos ocorreu uma grande mudança nesse sentido. Se antes elas brincavam com boneca até os 12 anos, hoje param aos 9”, diz a psicóloga Ceres de Araujo, especialista em desenvolvimento infantil. Suzana Grunspun, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, com foco em crianças e adolescentes, chama atenção para outro fenômeno: “Muitas garotas agora brincam escondido de boneca, por medo de virar motivo de chacota das colegas mais amadurecidas”. Para atraírem as novas meninas-moças, os fabricantes investem em bonecas hiper-realistas, hoje no topo da lista de desejos de 58% delas. São modelos que choram, comem de verdade e até conversam — o mais recente, da Sunny, se move como um bebê, tem batimentos cardíacos, responde ao toque e, pasmem, aprende a falar mais de 100 palavras.

Outra pesquisa da Let’s Play indica, porém, que atualmente mesmo brinquedos “ativos” perdem para a tela dos eletrônicos: a preferência para 75% das crianças que nasceram em 2010 é assistir a vídeos no YouTube. Os canais dedicados a esse público alcançaram 52 bilhões de visualizações em 2016. O programa, digamos, de maior audiência consiste em desembrulhar brinquedos, uma forma de comercial chamado de unboxing. Entre os produtos impulsionados por esse tipo de publicidade estão as bonecas LOL, modelinhos colecionáveis de menos de 10 centímetros vendidos a um preço médio de 100 reais cada um. Elas vêm dentro de uma bola, e a criança só sabe o modelo que ganhou depois de abrir as sete camadas de revestimento que a embalam. Na primeira, encontrará uma dica da personagem que a aguarda. Em seguida vêm adesivos, sapatos, roupinha — são mais de 120 itens, entre acessórios e bonecas. O objetivo é ter a coleção completa, só que algumas bonequinhas são mais raras que outras — há modelos anunciados na internet por até 5 500 reais.

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No Brasil, bonecas e bonecos ainda são os itens mais procurados nas lojas de brinquedos, mas suas vendas estão estagnadas há cinco anos, segundo dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq). Em 2017, eles abocanharam 18,9% do total (o segundo lugar fica com os carrinhos, com 15,5%). “A tendência é que esse índice comece a encolher”, diz o diretor de marketing da Estrela, Aires Fernandes. O próprio varejo está em crise: na semana passada foi anunciada a falência do gigante Toys“R”Us, que fechou centenas de suas lojas nos Estados Unidos e no mundo todo por não conseguir se adaptar à competição dos eletrônicos e do comércio via internet.

O fascínio pelas bonecas esteve presente em quase todas as civilizações. Há registros que datam da época das cavernas, passando pelos egípcios, gregos e romanos. Mas eram objetos de culto e decoração. Só a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial, as crianças foram encorajadas a brincar com elas. A primeira boneca produzida pela maior indústria de brinquedos da América Latina, a Estrela, foi para as prateleiras em 1937 — uma versão com corpo de pano e cabeça de massa que imitava um bebê. Duas décadas depois, a presidente da Mattel, Ruth Handler, teve a ideia de criar a Barbie, inspirada em um modelo de boneca europeia conhecida como Bild Lilli — por sua vez, baseada em uma personagem de quadrinhos que ganhava a vida como prostituta. Modelo de beleza, a Barbie foi se acomodando a cada época. Ganhou uma versão negra em 1980, outra candidata a presidente em 1992, ficou baixinha e gordinha em 2016 e agora, quem diria, virou Frida Kahlo — mas sem sobrancelhas emendadas. O detalhe deixou a família de Frida desgostosa. Para os familiares da pintora, a Mattel tentou “embelezar” a artista, ao disfarçar suas sobrancelhas hirsutas. Não é fácil lidar com mulheres — e meninas — poderosas.

Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575

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