Em março de 2016, Tiago Ferro, editor da revista on-line Peixe Elétrico e do selo de livros digitais e-galáxia, perdeu a filha mais velha, Manu, de 8 anos. A menina tinha todos os sintomas de uma gripe corriqueira, mas uma insidiosa miocardite ocasionou a morte. Esse dramático dado biográfico poderia sugerir que o recém-publicado livro de estreia de Ferro, de 41 anos, seja um ensaio memorialístico — o título, afinal, descreve a condição do autor: O Pai da Menina Morta. No entanto, embora a matéria autobiográfica obviamente permeie todas as páginas do livro, trata-se de uma obra de ficção — um romance, e belo romance, pelo que tem de áspero e intratável. Como tantos bons personagens de ficção, o protagonista sem nome próprio — identifica-se apenas com a expressão que dá título ao livro — suscita no leitor emoções conflitantes, contraditórias: não há como não estender a ele a empatia que devemos a uma pessoa que sofreu a pior perda possível, mas é também exasperante, excruciante acompanhá-lo na dissecação minuciosa da própria dor.
A expectativa natural é que os filhos enterrem os pais, e não o contrário — mas a natureza, tantas vezes cruel, gosta de contrariar todas as expectativas. O pai que perde uma filha, sobretudo em idade tão precoce, parece condenado a viver com essa marca perpétua: “Eu não quero ser O Pai da Menina Morta. Eu sempre serei O Pai da Menina Morta”, diz o narrador nas primeiras páginas do livro. Como o autor, o personagem perde a filha de 8 anos para o que parecia uma doença trivial; também como Tiago Ferro, ele ainda tem uma filha mais nova. Mas há diferenças marcantes: o peso da filha morta colabora para dissolver o casamento do protagonista com a mexicana Lina (a única personagem central que tem nome), enquanto Tiago continua casado com a mãe de sua filha, que é brasileira.
A narrativa não obedece ao registro realista próprio à reconstituição convencional de um processo de luto, com a dor que se segue à perda e a conciliação que se segue à dor. O protagonista passeia livremente entre o tempo presente, no qual busca um consolo impossível em sessões com uma terapeuta budista, um psicanalista, um médium, e suas memórias de infância e adolescência, também marcadas pela angústia, como se a Menina Morta lançasse sua sombra sobre os anos em que ainda não havia nascido. Há também passagens de delírio, com certa perversidade surrealista (não por acaso, o personagem admira A História do Olho, de Georges Bataille), e tudo isso permeado por referências musicais (por exemplo, Eric Clapton, que também perdeu um filho pequeno) e literárias (Carlos Drummond de Andrade, que se foi doze dias depois da morte de sua filha, Maria Julieta, e Hermann Kafka, a quem o filho Franz remeteu sua famosa Carta ao Pai, figuram com peso nas páginas finais).
Ainda há mais: sonhos, e-mails, fotos, comentários sobre temas políticos e dramas sociais, e até verbetes de um dicionário muito pessoal — enquanto o Houaiss dá apenas uma acepção para “miocardite” (“inflamação do miocárdio”), O Pai da Menina Morta lista catorze (“ninguém diagnosticou a tempo” é uma delas). Tanta variedade de registros carrega o risco de tornar a narrativa informe, sem eixo, mas o autor consegue controlar esse material díspar, extraindo de cada fragmento novas reverberações emocionais. É especialmente hábil o modo como Ferro semeia pequenos elementos recorrentes ao longo da história. Um exemplo: no início do livro, o protagonista, ainda criança, vê o pai dispor do corpo de um cachorro morto em um saco de lixo fechado com silver tape. Cerca de cinquenta páginas depois, ele vai ao aniversário de uma amiga, onde se sente deslocado (ele é sempre, afinal, o Pai da Menina Morta). A festa degenera em uma orgia insana na qual os convidados como que se desmancham — e suas entranhas são também guardadas em sacos de lixo com silver tape, unindo com um só signo trivial o luto infantil pelo cão e a dor adulta pela filha.
No seu Facebook, ao tempo em que Manu morreu, Tiago Ferro deixou lembranças ternas da filha, notas que permitiam vislumbrar a criança que ela foi. Seu personagem não faz o mesmo. Pura ausência, a Menina Morta quase não é individualizada. Mas há resíduos dela pela casa, que o narrador inventaria com detalhismo doloroso: o fio de cabelo na fronha, seis dentes de leite guardados em uma caixinha laranja. O maior sofrimento pode ser feito dessas miudezas.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575