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A voz do Kremlin

Putin montou um incrível aparato de propaganda no exterior para meter a colher na política interna alheia — e, de quebra, posar de poderoso em casa

Por Leonardo Coutinho, de Washington, e Johanna Nublat
Atualizado em 4 jun 2024, 17h46 - Publicado em 1 dez 2017, 06h00
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  • Good morning, America! Assim mesmo, em inglês, iniciou-se a primeira transmissão de uma emissora de rádio russa instalada bem na capital dos Estados Unidos. A quatro quarteirões da Casa Branca, a Sputnik transmite 24 horas diárias de programação desde julho passado. Entrevistas, reportagens e comentários são dirigidos ao público de Washington D.C. e de algumas áreas do Estado de Virgínia. Criada e financiada pelo governo de Vladimir Putin, a emissora é uma máquina de propaganda estatal coordenada do Krem­lin. “A regra é fazer os Estados Unidos parecer idiotas e idolatrar as realizações da Rússia”, disse um ex­funcionário a VEJA. Quem sintoniza o dial de seus aparelhos na frequência 105,5 escuta o que seus diretores definem como um cardápio alternativo de notícias. O patrão, Putin, é a estrela. Seus atos são exaltados no mais clássico estilo soviético.

    Na semana passada, o noticiário destacou a ação do Kremlin para encontrar uma solução pacífica para a questão nuclear da Coreia do Norte, um dos maiores desafios do governo de Donald Trump. Os aliados sempre são mencionados com complacência, e as questões de Cuba e do Irã são tratadas com críticas às intervenções americanas. “Eles fazem pura propaganda. A intenção é causar danos à política americana, criando tensões sociopolíticas entre grupos rivais e sujando a reputação dos Estados Unidos no exterior”, diz o historiador Stephen Blank, de Washington. Nada, a rigor, que o próprio governo americano já não tenha feito também.

    A diferença substancial, agora, está na tentativa russa de ditar os rumos dos acontecimentos, espalhando rumores e manipulando as redes sociais. Suspeita-se que nos últimos dezessete meses os russos interferiram em pelo menos quatro importantes pleitos ao redor do mundo: o referendo do Brexit na Inglaterra, em junho de 2016; as eleições presidenciais nos Estados Unidos, em novembro do ano passado; as da França, em maio deste ano; e o plebiscito sobre a separação da Catalunha, em outubro. Metade dos perfis falsos criados nas redes sociais para favorecer os independentistas de Barcelona era de russos. Em todas essas incursões, os agentes de Putin disseminaram notícias falsas ou distorcidas para defender o desfecho que interessava ao Kremlin ou simplesmente para lançar dúvidas sobre a democracia ocidental.

    Apesar do alarde, é pouco provável que o dedo russo tenha definido o resultado das votações. Fatores como o descontentamento com a classe política, o medo da imigração e o apelo do populismo foram mais determinantes. Da perspectiva interna da Rússia, contudo, a campanha de desinformação externa é um tremendo sucesso. Sua investida internacional serviu como propaganda negativa da democracia. “Putin quer minar o conceito de democracia para demonstrar ao povo russo que as alternativas ao sistema que ele estabeleceu são tão ruins quanto, se não forem piores. Seu objetivo principal é ficar no poder”, diz David Kramer, especialista em diplomacia e Rússia da Universidade Internacional da Flórida.

    Tudo indica que ele vai conseguir. Putin tem aprovação de 80% da população e deve vencer com tranquilidade as eleições para mais um mandato em março do ano que vem. A guerra de propaganda também ajuda a forjar a imagem — dentro e fora da Rússia — de que Putin é um líder extremamente poderoso. “A reação exagerada do público americano diante da possível influência russa nas eleições transformou Putin no líder onipotente capaz de escolher o presidente dos Estados Unidos”, diz Ivan Kurilla, professor de história e relações internacionais da Universidade Europeia de São Petersburgo, na Rússia. Neste ano, opositores russos, como o advogado Alexei Navalny, chegaram a reclamar que a imprensa ocidental estava dizendo que Putin era mais forte do que realmente é.

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    A interferência em assuntos de outros países não é novidade. Durante a Guerra Fria, partidos comunistas do mundo inteiro seguiam cegamente as ordens enviadas por Moscou. A novidade está no uso das redes sociais. A espionagem russa, hoje, serve não apenas para fins de inteligência, mas sobretudo como ferramenta de desinformação e para bagunçar eleições. A modalidade foi aperfeiçoada pelos russos e, basicamente, só é empregada por eles. “Operações de desinformação têm longa história na doutrina estratégica russa e foram intencionalmente desenvolvidas, implantadas e modernizadas com a era digital. Essas operações não vão diminuir”, diz a brasileira Cristiana Kittner, analista sênior da empresa americana de segurança digital FireEye. Ao contrário, ficarão cada vez mais sofisticadas. “Sempre que falham em uma tentativa, os russos mudam de técnica”, diz o inglês Keir Giles, especialista em guerra de informação russa da Chatham House.

    O FBI, a polícia federal americana, está investigando a atuação da máquina de propaganda russa. Em outubro, o Departamento de Justiça exigiu que o canal RT (sigla para Russian Television) seguisse as normas da Lei de Registro de Agentes Estrangeiros. Criada nos anos 1930, ela tinha por objetivo evitar que a liberdade de imprensa fosse utilizada para a propagação de mensagens nazistas nos Estados Unidos. Há duas semanas, foi a vez de a Sputnik ser obrigada a se declarar órgão oficial de governo estrangeiro, medida que impõe uma série de obrigações, como a revelação de seus financiadores. Na semana passada, como retaliação, Putin disse que também passará a exigir o registro equivalente, na Rússia, dos meios de comunicação que recebem ajuda financeira externa. As reportagens terão de vir acompanhadas de uma tarja com a informação de que o material foi produzido por um governo estrangeiro. Mais uma vez, ponto para Putin, que não perde uma chance de atrapalhar a divulgação de informações sérias dentro de suas fronteiras.


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    Pesquisas nucleares ou de opinião?

    Inaugurado em 2015 no Rio de Janeiro, o escritório da Rosatom, estatal russa de energia nuclear, tem funcionado a pleno vapor. Conquistou assento nos principais foros de discussão sobre energia no Brasil, e seus representantes estão visitando universidades para fechar contratos de parceria em pesquisas científicas. Na semana passada, a empresa assinou um memorando de entendimento com a Eletronuclear, sua congênere brasileira, e com a Eletrobras. Os russos querem construir novas usinas nucleares no Brasil e participar do processo de manutenção e administração das já existentes.

    O fato curioso é que a Rosatom America Latina Ltda. está formalmente registrada no Brasil como uma agência de pesquisa de opinião pública e publicidade, segundo dados da Receita Federal. A figura jurídica inadequada pode fazer ruir qualquer contrato firmado diretamente entre a agência russa e entidades públicas. Os executivos da empresa, questionados sobre o caso por VEJA, justificaram-se dizendo que a subsidiária tem como objetivo “buscar oportunidades de negócios e promover os produtos e serviços da Rosatom, inclusive através de análise de mercado, na América Latina”. Permanece, porém, a dúvida: por que registrar como publicidade uma atividade que, na prática, está claramente voltada para parcerias em tecnologia nuclear? As conversações mantidas pelo presidente da subsidiária no Rio, Sergey Krivolapov, com autoridades do setor energético brasileiro nada têm a ver com estratégias de comunicação. No Paraguai, Krivolapov firmou um protocolo de intenções para a construção de uma usina. Na Bolívia, já iniciou a instalação de um centro de pesquisa nuclear perto de La Paz.

    A agência tem um histórico de participação em projetos polêmicos. Em 2010, quando o Ocidente suspeitava das ambições atômicas dos aiatolás, a usina nuclear de Bushir, no Irã, entrou em funcionamento com tecnologia da Rosatom. Mas talvez o registro como empresa de publicidade tenha sido apenas um ato falho, tão acostumadas estão as autoridades russas a fazer propaganda no exterior.

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    L.C.

    Publicado em VEJA de 6 de dezembro de 2017, edição nº 2559

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