O mês de setembro do ano passado foi trágico para a história do combate à corrupção no Brasil. No dia 14, a Polícia Federal deflagrou uma operação para desarticular um “esquema criminoso” que desviara “mais de 80 milhões de reais” dos fundos destinados à Universidade Federal de Santa Catarina. Ao anunciar a operação em sua página no Facebook, seguida por 2,7 milhões de pessoas, a Polícia Federal ainda acrescentou duas hashtags para festejar sua atuação: #euconfionapf e #issoaquiépf. Na operação, os agentes prenderam sete pessoas, entre as quais o professor Luiz Carlos Cancellier de Olivo, então com 59 anos, reitor da universidade. Cancellier foi algemado, acorrentado pelos pés e submetido a revista íntima. De uniforme cor de laranja, permaneceu trinta horas detido, parte delas em um presídio de segurança máxima, e, ao sair, ficou proibido de pisar no câmpus da universidade, até ser liberado por ordem judicial. A experiência traumática lhe deixou uma cicatriz indelével. Dezoito dias depois, suicidou-se, pulando do 7º andar de um shopping center em Florianópolis. Agora, após sete meses, VEJA teve acesso exclusivo às 6 000 páginas do inquérito e às 800 páginas do relatório final da investigação. É uma leitura perturbadora pelo excesso de insinuações e escassez de provas.
No relatório, o “esquema criminoso” revelou-se um punhado de funcionários de médio escalão envolvidos numa teia de operações miúdas e amadoras. Os “mais de 80 milhões de reais” sumiram. O valor, na verdade, referia-se ao total de verbas que a UFSC recebeu ao longo de dez anos, e não ao total dos desvios, como a própria Polícia Federal reconheceu mais tarde. Sobre o montante efetivamente desviado, a investigação não chegou a conclusão alguma, perdida no emaranhado de pequenas transações mais ou menos obscuras. Quanto ao reitor, suspeito de proteger a organização criminosa, o inquérito é dolorosamente pífio.
O relatório dispara uma fuzilaria verbal contra o reitor. Afirma que “Cancellier detinha pleno conhecimento sobre o funcionamento e a dinâmica das fundações e de todas as irregularidades”. Assegura, ainda, que o reitor “agiu decisivamente em condutas impugnadas nesta investigação” e participou de uma “orcrim” (abreviação da polícia para organização criminosa). O aspecto alarmante é que as afirmações do relatório não se baseiam em provas conclusivas. Não há um depoimento peremptório, um documento inequívoco, uma prova cabal. O texto limita-se a especular sobre a intenção de troca de funcionários e sobre o conteúdo real de conversas no WhatsApp, a apontar a estranheza de algumas coincidências, e chega até a fazer referências a fofocas e “comentários”. O Ministério Público Federal, num sinal de que não considera o trabalho acabado, já pediu mais 180 dias para examiná-lo.
Ao final, os investigadores pedem o indiciamento de 23 pessoas, com base na suposta ocorrência contumaz de pequenos golpes praticados por funcionários e beneficiários de bolsas do governo. No roteiro de irregularidades, as mais citadas são a facilitação de recebimento de benefício duplo, arranjos entre colegas para aumentar o ganho mensal, colocação de parentes e amigos em posições-chave e vantagens indevidas na contratação de serviços de terceiros. Disso resultam acusações de lavagem de dinheiro a organização criminosa, passando por peculato e falsidade ideológica. Mas, também sobre esses 23 listados, os elementos e indícios são frágeis. Ficam na esfera de possibilidades, desconfianças, suspeitas vagas. A leitura das 6 000 páginas do inquérito, mas principalmente das 800 páginas do relatório final, passa a impressão de que a PF, acuada pela suspeita de que agiu de modo arbitrário ao pedir a prisão do reitor, se empenhou em superdimensionar as acusações, dando-lhes cores mais intensas do que a prudência recomendaria.
Os investigadores pedem o indiciamento de 23 pessoas com base na ocorrência contumaz de pequenos golpes
A PF apresenta depoimentos, aos quais anexa gravações de conversas e documentos como contratos de trabalho e listas de presença. Também lança mão de um relatório do Tribunal de Contas da União que, já em 2015, recomendava controles mais rígidos no uso de verba pública pela UFSC e atribuía atos suspeitos a cinco dos indiciados. Cancellier não está entre eles. Espremendo-se as denúncias contidas no inquérito, extrai-se a evidência de um esforço enorme da PF — às vezes além do limite — para inculpar o reitor, que está excluído do processo. Ao apresentar a lista de envolvidos, o delegado Nelson Napp, encarregado do caso, escreveu na página 3 601 do inquérito: “Deixo de indiciar Luiz Carlos Cancellier de Olivo em razão da extinção da punibilidade nos termos do artigo 107 inciso 1 do Código Penal”. Ou seja, o reitor não está lá porque morreu.
Mas há uma novidade na investigação. O delegado Napp inclui, entre os indiciados, Mikhail Cancellier, de 30 anos, filho único do reitor e também professor de direito na UFSC. Chamado a depor no dia 28 de março, ele foi confrontado com três depósitos variando entre 1 600 e 4 000 reais em sua conta, em 2013. O total dos depósitos chegou a 7 102 reais. Segundo a PF, o dinheiro foi transferido de um projeto que o reitor coordenava para a conta do professor Gilberto Moritz, outro indiciado. Moritz, por sua vez, fez as remessas para Mikhail. Importante: só a terceira movimentação é respaldada por documentos. Sobre o resto, diz o inquérito: “Comenta-se que os recursos transferidos para Gilberto Moritz foram oriundos do projeto coordenado por Luiz Carlos Cancellier”. Indagado sobre a origem do dinheiro, o filho do reitor “afirmou que não se recorda”. Sem saber se o dinheiro é lícito ou ilícito, a polícia pediu seu indiciamento. Pessoas próximas acreditam que os depósitos eram pagamentos que o próprio Cancellier tinha a receber, e que ele teria dado instruções para que fossem encaminhados diretamente para a conta do filho. Nessa época, 2013, o rapaz ainda estudava e recebia constante ajuda financeira do pai. A inclusão de seu nome no inquérito não foi de todo inesperada. No dia do enterro, 3 de outubro, Mikhail ouviu de um amigo advogado: “Vão fazer uma devassa na vida de vocês. Prepare-se”.
As razões que levaram o reitor à prisão não ultrapassaram o terreno das suspeitas mesmo depois de sete meses de investigação
Quando foi preso, em setembro do ano passado, o reitor foi acusado de tentar obstruir as investigações sobre o “esquema criminoso”. Para fundamentar o pedido de prisão que formulou à Justiça, a Polícia Federal apresentou cinco razões. No único depoimento que prestou, no mesmo dia em que foi deslocado para o presídio de segurança máxima, o reitor rebateu, durante cinco horas, todas as cinco suspeitas da PF. Em seu relatório, a polícia ignora a defesa do reitor e, ao contrário, reforça uma a uma as denúncias contra Cancellier, ainda que sem novos elementos. A elas:
■ A polícia acusou o reitor de criar “a Secretaria de Educação a Distância (EaD) para estar acima do já existente Núcleo Universidade Aberta, vinculando-a diretamente à reitoria”. O reitor, na suspeita policial, fez isso para sedimentar seu poder sobre a área que comandava antes de assumir a reitoria, e assim prosseguir com o “esquema criminoso”. O relatório final, porém, não traz nada sólido para sustentar a suspeita — ancora-se apenas no fato de que o reitor nomeou alguns investigados para a novo órgão. Em seu depoimento, registrado na página 569 do inquérito, Cancellier explica que, na verdade, apenas reativou uma secretaria que fora extinta e estava fazendo falta. Era o órgão que promovia “a centralização da cadeia hierárquica do programa de educação a distância”, disse.
■ A polícia acusou o reitor de nomear “no âmbito da EaD os professores do grupo que mantiveram a política de desvios e direcionamento nos pagamentos das bolsas”. A PF aponta como evidência de armação um suposto recado do reitor a um funcionário que seria afastado para abrir vaga: “Para não me constranger, pode pedir para sair”. Na página 570, Cancellier dá sua versão. Diz que fez apenas três trocas de quadros na área de ensino a distância e as atribui a “razões discricionárias de melhoria de gestão”. Deu uma justificativa técnica, a de que não considerava “adequado manter no colegiado (…) dois membros oriundos de um mesmo curso de graduação”, como era o caso. A PF não conseguiu avançar nessa suspeita.
■ A polícia acusou o reitor de procurar “obstaculizar as tentativas internas sobre as irregularidades na gestão de recursos do EaD”. O inquérito descreve que a suspeita decorre de uma denúncia anônima recebida pelo corregedor Rodolfo Hickel do Prado, o primeiro a falar em uso irregular de verbas. De acordo com a polícia, Cancellier teria criado barreiras para dificultar o andamento do caso, argumento repetido em três outros depoimentos. O reitor, por seu lado, garantiu que nunca tentou “impedir, embaraçar ou amenizar a investigação administrativa”, até porque, mesmo sabendo da existência da denúncia, demorou meses para tomar conhecimento de seu exato teor. Foi mais longe: confirmou que, em junho, decidiu “avocar os autos da sindicância investigativa a fim de empregar maior celeridade à apuração”. Passados seis meses da denúncia anônima, ele argumentou, a corregedoria ainda não havia apresentado um relatório. Prado foi exonerado em fevereiro, reverteu a decisão com uma liminar em abril, mas ainda não retomou o cargo. A PF também não avança nessa suspeita.
■ A polícia acusou o reitor de fazer pressão “para a saída da professora Taisa Dias da cadeira de coordenadora do EaD do curso de administração”. Ela teria entregado nas mãos do reitor comprovação de uso indevido de verbas, coisa que o reitor, em seu depoimento, negou taxativamente. Disse que Taisa jamais lhe mostrara documento algum a esse respeito. Questionado se tinha interesse na saída da professora, ele disse que não e lembrou, inclusive, que ela o havia apoiado na campanha para a reitoria. O afastamento de Taisa da coordenadoria de fato foi assunto de muitas reclamações levadas ao reitor. Na maioria das vezes, ele só ouvia. Não há registro de nenhuma pressão dele contra ela nessas conversas. Só se manifestou claramente quando informou ao grupo, tempos depois, que assinara a exoneração. Taisa continua no quadro de professores da UFSC. A polícia não conseguiu comprovar que o tal documento tenha mesmo sido entregue ao reitor.
■ A polícia ainda o acusou de receber “bolsa do EaD via Capes e via Fapeu” (sigla de Fundação de Amparo à Pesquisa e Extensão Universitária). Ao tomar o depoimento do reitor, ela nem sequer perguntou sobre esse assunto. A questão — de que ele receberia duas bolsas irregularmente — só aparece, por vias tortas, no momento em que o inquérito cita um relatório da Advocacia-Geral da União recomendando “um maior aprofundamento” das condições em que foram feitos “alguns dispêndios no âmbito” do estudo a distância na UFSC. Um desses dispêndios, de 62 400 reais, foi repassado a Cancellier ao longo de seis anos, uma média de 10 000 reais por ano. E “há a possibilidade” de que se trate de “acúmulo de recebimento de bolsas”, diz o relatório, sem se alongar.
As cinco razões que levaram o reitor à prisão — e, em seguida, resultaram em sua morte — não ultrapassaram o terreno da suspeita mesmo depois de sete meses de investigação. Cancellier, ao suicidar-se, deixou um bilhete dizendo que sua morte fora decretada no momento em que o proibiram de voltar à universidade, assim que saiu da prisão. Seu irmão, Acioli, que mora em São José dos Campos, conta que Cancellier ficou sem chão devido à acusação dos desvios. “Luiz Carlos tinha medo de sair à rua e alguém lhe dizer: ‘O senhor não é o reitor dos 80 milhões?’ ”, recorda Acioli. A prisão de Cancellier tornou-se um assunto nacional depois que seu suicídio chamou a atenção para a Operação Ouvidos Moucos. Na época, a delegada que chefiava a operação, Érika Marena, precisou prestar explicações à própria corporação sobre sua conduta. Ex-coordenadora da força-tarefa da Lava-Jato, ela foi submetida a uma sindicância da própria PF, que concluiu que não houvera nenhum excesso. Em março, ela foi transferida para Sergipe.
Muito barulho por pouco
Cinco acusações infernizaram a vida de Cancellier nos dezoito dias entre sua prisão e seu suicídio. A ordem de detenção, que incluiu uniforme de presidiário e correntes, foi inteiramente baseada nelas. Sete meses depois da tragédia, a PF não conseguiu coletar provas sólidas o suficiente para endossar essas suspeitas. Abaixo, três versões apresentadas pela polícia no inquérito e as incongruências de cada uma
Publicado em VEJA de 2 de maio de 2018, edição nº 2580