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A saga dos transgêneros

Especialista em crianças que não se identificam com seu sexo de nascimento fala das muitas dúvidas e das poucas certezas que a ciência já tem sobre o tema

Por Mariana Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 19 ago 2017, 06h00 - Publicado em 19 ago 2017, 06h00
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  • A psicóloga americana Kristina Olson dirige o TransYouth Project, da Universidade de Washington. Trata-se de um dos principais centros de pesquisa do mundo sobre pessoas transgênero — como são chamados os indivíduos que nascem com o sexo feminino mas se sentem pertencentes ao gênero masculino, ou o contrário. Ph.D. pela Universidade Harvard e professora da Universidade de Washington, Kristina acompanha hoje 150 crianças transgênero, monitorando a percepção que têm de si mesmas e sua relação com amigos e familiares. A meta é chegar a 350 pesquisados e observá-los por um período de vinte anos. Em entrevista a VEJA, Kristina fala das muitas dúvidas e das poucas certezas que a ciência já tem sobre o tema.

    A existência de crianças transgênero é um fenômeno novo ou é algo que era simplesmente ignorado pela sociedade até recentemente? Pessoas transgênero sempre existiram ao longo da história. Muitos adultos contam que já sabiam que eram transgêneros desde a infância, mesmo que não soubessem a palavra certa para isso. A novidade é que, pelo menos nos Estados Unidos, há um pequeno número de crianças transgênero cujos pais apoiam sua nova identidade. No passado, crianças transgênero eram comumente ignoradas. Hesitavam em expressar sua identidade ou, quando o faziam, eram punidas, levadas a terapeutas que se propunham a “co­nsertá-las” ou ensinadas a esconder seus sentimentos. Então, até recentemente, pessoas transgênero não se assumiam antes da idade adulta.

    Durante a infância, as crianças passam por várias fases. Como saber se a vontade de mudar de sexo também não é algo transitório? Essas várias fases também incluem a questão do gênero, de fato. Quando um terapeuta atesta que uma criança é transgênero, ele analisa quanto ela é insistente, consistente e persistente em sua identidade. Qualquer grande decisão que a família tome, como fazer a transição social daquela criança, acontece apenas depois de a identidade transgênero ter sido demonstrada por vários meses ou por vários anos de forma insistente e consistente. Não se trata de um processo rápido.

    O que é transição social? Significa apenas uma criança ou um adolescente mudar de nome, de pronomes e de visual. Ou seja: sem mudança de sexo.

    E o que significa uma criança ou adolescente ser “insistente” e “consistente”? Significa ter atitudes que se repetem ao longo do tempo. Não é o caso de uma criança que disse uma vez que gostaria de pertencer ao sexo oposto, ou daquela que só diz isso no Halloween ou quando brinca com o primo, por exemplo. É a criança que fala isso e fala de novo e de novo e de novo. Às vezes, talvez a criança nem possa chegar a exercer essa vontade, por causa do ambiente em que vive. Por exemplo, se quer ir à escola vestida com as roupas do sexo oposto, mas a escola não permite, ela provavelmente não fará isso. Mas vai manifestar sua vontade do mesmo jeito. Ela falará à mãe, ao pai, à professora, vai insistir na mesma ideia.

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    É possível dizer, grosso modo, que os pais não deveriam se preocupar quando a criança prefere roupas e brinquedos do sexo oposto, mas, sim, quando dizem querer mudar de nome, por exemplo? Muitas crianças apenas gostam das roupas e dos brinquedos que não aqueles que nossa cultura aponta como os mais adequados para seu gênero. Isso não tem nada a ver com querer mudar de sexo. Essas coisas isoladamente não atestam que a criança seja transgênero. Às vezes, ela pode estar só querendo brincar de ser um personagem de um desenho animado da TV. Quanto a querer mudar de nome, isso, por si só, também não significa nada. Nem toda criança sabe que existe a possibilidade de mudar de nome. Nada isoladamente é indício de transgeneridade. O que caracteriza essa situação é a combinação de todos os sinais e sua repetição ao longo do tempo. E, é claro, o diagnóstico deve ser dado por psiquiatras e médicos especialistas no assunto. Só eles podem fazer isso.

    Quais os principais equívocos cometidos por pais de crianças que dizem não pertencer ao sexo de nascimento? Eu não atendo famílias que ainda estão nesse processo de investigação. Mas muitos pais frequentemente se dizem arrependidos de ter pressionado seus filhos a ser “normais”. Eles se sentem mal porque as coisas não caminharam bem por causa disso, as crianças se magoaram e o relacionamento com os filhos acabou sendo prejudicado.

    Um menino ou menina transgênero é homossexual? Não. Ser transgênero é diferente de ser homossexual. No caso da homossexualidade, a pessoa se identifica com seu sexo de origem, mas sua orientação sexual faz com que se sinta atraída por pessoas do mesmo sexo que o seu. O homossexual não tem dúvida sobre seu sexo, como ocorre com o transgênero.

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    Quando se decide que uma pessoa deve mudar de sexo, ela precisa começar a tomar hormônios? Nos Estados Unidos, intervenções hormonais só começam quando a criança está prestes a entrar na puberdade. Antes disso, só há transição social. Já na puberdade, os Estados Unidos e a Europa permitem que crianças transgênero que tenham o apoio de seus pais e acompanhamento médico se candidatem a usar “bloqueadores de puberdade”. São hormônios que estancam o início da puberdade, mas não induzem a puberdade do sexo oposto. Apenas estancam. O que normalmente acontece é que, alguns anos depois, por volta dos 15 anos, aquele ou aquela jovem pode também se candidatar a tomar hormônios para mudar de sexo. Mas, de novo, isso depende da aprovação médica e dos pais.

    Qual a incidência da transgeneridade na população mundial? Não há estimativas oficiais, mas estudos sugerem que em torno de 0,3% da população mundial seria transgênero. Não há um número exato, mas sabemos que é mais que zero e menos que 1%. É algo raro.

    Quais as principais fases pelas quais passa uma família ao lidar com uma criança que não se sente à vontade no próprio corpo? As reações variam bastante. Há famílias que aceitam rapidamente o fato. Outras tentam com afinco convencer a criança de que ela está errada: levam-na a terapeutas e igrejas que se propõem a mudar sua identidade e estabelecem punições por seu comportamento. E existem ainda aquelas que simplesmente tentam fingir que não veem o que está acontecendo. Trabalhamos com crianças que experimentaram todas essas reações dentro da família e que, apesar disso, ainda insistem ser do gênero oposto.

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    Mas não há um comportamento dominante? No grupo com o qual lidamos, o mais comum são os pais que primeiramente tentam ignorar o clamor do filho ou explicar a ele que seu gênero está associado ao sexo com o qual nasceu. A maioria dos pais acha que é só uma fase. Mas, após alguns anos, eles começam a notar que a suposta fase não vai embora. Depois dessa percepção, normalmente passam a apoiar a criança na transição social, que é basicamente mudar o corte de cabelo, as roupas e os pronomes: “ele” passa a ser “ela”, por exemplo.

    A atriz Angelina Jolie e seu ex-marido Brad Pitt disseram em entrevistas que sua filha Shiloh, de 11 anos, prefere ser chamada de John e usar roupas de menino. Eles agem bem ao fazer a vontade da criança? Eu não comento casos particulares, até porque não sou terapeuta e não me cabe dizer aos pais o que devem ou não fazer. O que acho é que muitos pais tentam dar o seu melhor. Tomar essas decisões não é fácil para ninguém.

    É possível manter uma criança assim em uma espécie de zona transitória até ver para onde as coisas vão? Muitas crianças gostam de se vestir e de brincar como se fossem do gênero oposto, o que não quer dizer, é bom repetir, que sejam transgêneros. É importante dizer isto: a maioria das crianças que agem em desacordo com o próprio gênero não é transgênero. São transgêneros apenas aquelas que sentem que realmente fazem parte do outro grupo de gênero.

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    É mais comum haver meninos que querem ser meninas ou o contrário? Aos olhos das crianças, meninos e meninas sentem os primeiros sinais de sua identidade de gênero muito cedo, entre 2 e 4 anos. Ocorre que os pais dos meninos percebem antes os sinais de seus filhos de maneira mais óbvia do que os pais das meninas. Isso faz com que comecem a moni­torá-los desde muito cedo. Na nossa sociedade, as pessoas tendem a ser mais tolerantes com garotas que apresentam algum comportamento em desacordo com o gênero, como gostar de futebol, usar camisetas largonas e ser chamadas de Sam em vez de Samantha. Essa mesma tolerância não ocorre com meninos que querem fazer balé, usar vestido e ser chamados de Samantha em vez de Sam.

    O cenário muda na puberdade? Até a puberdade, a sociedade percebe mais claramente os sinais transgênero nos meninos. Mas, na puberdade, esses sinais se evidenciam — de novo aos olhos da sociedade — também nas garotas, conforme elas reagem ao ver o corpo mudar.

    Quais aspectos positivos e negativos a senhora destaca na maneira como os Estados Unidos vêm lidando com crianças transgênero? Há uma variação muito grande. Em alguns estados, como Washington, onde vivo e trabalho, crianças transgênero podem usar o banheiro associado à sua identidade de gênero e participar de times de modalidades esportivas também associados à sua identidade de gênero. Pessoas transgênero são protegidas por políticas antidiscriminatórias em vários estados. Mas em outros estados a criança tem de ir ao banheiro de acordo com seu sexo de nascimento e praticar esportes também seguindo a mesma lógica — e não conta com proteções legais. Há um grande número de adolescentes transgênero que não têm onde morar, o que sugere que foram expulsos de casa. Então existe uma variação bem grande, desde o jovem que demonstra ter excelente saúde mental até aquele que sofre de depressão e exibe tendências suicidas.

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    O que pode ser feito para os transgêneros serem mais bem aceitos pela sociedade em geral? Geralmente, nós tememos aquilo que não conhecemos muito bem. Então, conforme formos conhecendo pessoas transgênero, acredito que nos tornaremos mais tolerantes com a diversidade que existe no mundo.

    Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2017, edição nº 2544

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