Quando se soube que Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, havia deixado uma delegacia de São Paulo como se fosse um respeitável cidadão que nada deve à Justiça, a indignação disseminou-se. Um dia antes, na terça-feira 29, ele havia sido detido por ter se masturbado dentro de um ônibus na Avenida Paulista e ejaculado no pescoço de uma passageira, em cena testemunhada por dezenas de pessoas. A revolta aumentou quando, três dias depois de sua soltura, Novais voltou a molestar uma mulher na mesma região. A essa altura, era público que existiam contra ele nada menos que dezessete boletins de ocorrência registrados na Polícia Civil desde 2009, todos por variantes do mesmo tema: abuso de mulheres. Estupro, importunação sexual e ato obsceno foram algumas das classificações para os seus crimes. Por que Novais estava solto? Por que foi liberado naquela quarta-feira?
Inicialmente, a responsabilidade pela evidente injustiça coube ao juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto, que determinou a soltura do abusador depois do primeiro episódio na Paulista. Seguindo parecer do Ministério Público, ele avaliou que o ato de Novais não configurou um flagrante de estupro (crime sujeito a prisão imediata), mas uma importunação ofensiva ao pudor (contravenção passível de multa). Baseou sua decisão na Lei do Estupro, de 2009, que diz que o crime consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Como a vítima de Novais estava sentada, o juiz entendeu que Novais não usou de “violência ou grave ameaça” para abusar dela — o estupro, portanto, estaria descartado — e liberou Novais para voltar para casa. A decisão é legal, mas sua interpretação é discutível — e, em função dela, o juiz foi massacrado no tribunal da internet.
O promotor Pedro Eduardo de Camargo Elias diz que, apesar de a Lei do Estupro poder ser aplicada a qualquer ato libidinoso forçado, magistrados tendem a recorrer a tipificações menos graves pelo fato de o estupro ser considerado crime “hediondo”, sujeito a pena de até dez anos. Em outras palavras: a lei vai de oito a oitenta, é opaca e ambígua. “Se a vítima ficou em estado de choque, não dá para dizer que não houve violência”, diz a procuradora aposentada e advogada criminalista Luiza Nagib Eluf. Luiza propôs a tipificação do “crime de molestação” para caracterizar atos como os praticados por Novais no novo Código Penal em tramitação no Congresso.
Na busca por culpados no caso do abusador da Paulista, há que lembrar o papel do Ministério Público e da polícia. Nos oito anos que separam a primeira da última investida conhecida de Novais, o Ministério Público fez apenas duas denúncias criminais contra ele. Os demais registros foram “termos circunstanciados”, jargão jurídico para tipificar infrações menores que são resolvidas com o pagamento de multa. Quanto à polícia, existem indícios de descaso. Houve uma acusação de estupro contra o molestador que não chegou nem perto de ser investigada. Uma de suas vítimas, ouvida por VEJA, disse nunca ter sido procurada para prestar informações sobre o caso depois de registrar um boletim de ocorrência em 2016.
Novais estava em prisão preventiva desde o segundo flagrante na Paulista, quando seu caso já havia se tornado famoso. Coincidentemente, na segunda-feira 4, foi julgado pela primeira vez e condenado a dois anos de prisão no processo derivado de uma das duas únicas denúncias oferecidas contra ele pelo Ministério Público, prova de que a Justiça pode, sim, ser falha e tardia. E de que a voz da mulher ainda não é ouvida. Afinal, foram necessárias dezessete infrações para que seu caso ganhasse atenção pública.
NO BRASIL, 143 CASOS POR DIA
A decisão do juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto de libertar Diego Novais depois do primeiro episódio de abuso provocou nas redes sociais uma onda de protestos que incluiu até o planejamento — com data e horário divulgados no Facebook — de uma “ejaculação em massa” em frente ao fórum onde o magistrado dá expediente.
Parte da reação se deve aos números alarmantes ligados ao crime de estupro no Brasil. Em 2015, foram 45 460 ocorrências e 6 888 tentativas registradas — 143 casos por dia. Em levantamento do Datafolha divulgado neste ano, 40% das entrevistadas disseram ter sofrido algum tipo de assédio sexual — 10% relataram ter sido vítimas de abuso dentro de ônibus, trem ou metrô. Outro componente da onda de protestos, porém, teve origem num equívoco. Grande parte das mensagens postadas nas redes fazia menção ao falso fato de o juiz considerar que não teria havido “constrangimento” para a vítima de Novais, quando o que o magistrado não viu foi o “uso da violência” — conceito que a lei do estupro trata de forma ambígua. Diante da repercussão do caso, o Congresso começou a se mexer. Na segunda, o deputado Aureo Ribeiro (SD-RJ) apresentou um projeto de lei que criminaliza a ação de “constranger alguém por meio de ato libidinoso não consentido”. A proposta prevê prisão de até cinco anos para o abusador. Tramitam no Congresso pelo menos outros cinco projetos com o mesmo teor — que agora subitamente ganharam a atenção dos parlamentares.
Publicado em VEJA de 13 de setembro de 2017, edição nº 2547