Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Ana Beatriz Cerisara: a boa morte

A professora que decidiu não fazer tratamentos contra um câncer terminal deixou um sereno ensinamento sobre o próprio fim

Por Adriana Dias Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h28 - Publicado em 29 mar 2018, 17h34
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Em agosto do ano passado, VEJA passou dois dias com a professora gaúcha Ana Beatriz Cerisara, então com 60 anos, a convite dela e com a concordância da família. Ana Bea estava em estágio terminal de um triplo câncer no intestino. Resolvera não se submeter a nenhuma cirurgia e deixar a vida seguir seu curso natural. Queria contar sua história. “A decisão de abrir mão da cirurgia me deu calma”, disse, ao enxergar a finitude com serenidade. “Estou pronta para morrer. Não estou desistindo. Apenas não quero ficar viva a qualquer preço.” Do encontro em Florianópolis, na casa da professora, nasceram uma reportagem publicada em dezembro e um vídeo postado no Facebook, que atraiu enorme atenção — chegou a 9,6 milhões de visualizações e 130 000 compartilhamentos. Houve comoção ante a sinceridade cortante de uma mulher que decidira enfrentar a morte com a vida. Em suas palavras: “Quero ter uma boa morte, mas sei que para isso tenho de ter uma boa vida”.

    Há duas semanas, VEJA foi convidada a visitar novamente Ana Beatriz. Ela sabia que lhe restava pouco tempo. Contou mais de sua extraordinária experiência pessoal ao se despedir de tudo. Contou — e morreu na madrugada do sábado 24 de março, aos 61 anos, seis dias depois do derradeiro contato com os repórteres da revista. Estava fraca. Perdia o fôlego para executar as tarefas mais simples, como tomar banho e comer. Mas se mostrava ainda mais tranquila do que nas primeiras conversas, ainda mais segura da decisão de não se submeter a nenhum tipo de tratamento fútil. “Estou morrendo. Não sinto dor. Que morte maravilhosa. Estou mais viva do que nunca”, disse. O depoimento completo está no site de VEJA. A professora fez um único pedido na aproximação com os jornalistas: que a reportagem e o vídeo sobre seus instantes finais só fossem divulgados depois de sua morte.

    https://www.youtube.com/watch?v=b8dPnIVajNs

    Ela sucumbiu à anemia, e não a outros sintomas mais agressivos do câncer de intestino, como a oclusão intestinal ou a falência hepática por metástase. Nas últimas duas semanas, a fraqueza foi se instalando progressivamente. Em 8 de março, não conseguiu mais subir a escada até seu quarto. Sua cama foi então transferida para o térreo da casa. No dia 21, depois do último banho de chuveiro, não saiu mais da cama. Pediu ao filho, Cauê, de 36 anos, que dormia a seu lado havia duas noites, que a deixasse a sós. Também não queria mais ouvir os barulhos que dão vida a uma casa, como o som da louça sendo lavada ou do liquidificador ligado. No dia 22, disse que não queria decidir mais nada. Suas duas últimas palavras foram uma brincadeira dirigida a Sandra, a prima que a acompanhava: “Desenruga, baixinha”. Não reclamou nenhuma vez de dor. Morreu dormindo.

    Teve a chamada “boa morte”, cuja expressão em grego, euthanatos, está na mesma raiz da palavra eutanásia. Convém ressaltar, contudo, que a morte de Ana Bea foi outra coisa, não uma decisão médica destinada a abreviar sua vida. A eutanásia é proibida no Brasil. Para muitos, vai contra os benefícios proporcionados pelos recursos da ciência, além de ser repudiada por algumas religiões.

    Continua após a publicidade

    Ana Bea não interrompeu uma vida terminal. Decidiu simplesmente vivê-la, até que a morte chegasse com naturalidade. Diz Ana Claudia Quintana Arantes, geriatra da Casa do Cuidar e do Humana Vida e médica de Ana Bea: “Os tratamentos que poderiam ser oferecidos para a doença não permitiriam a qualidade de vida que ela usufruiu”.

    A boa morte tem conquistado espaço na medida em que vai deixando de ser tabu. Nela abandonam-se os medicamentos porque não há cura, mas qualquer dor ou sofrimento são aliviados. Ana Bea não sentiu dores. Nos últimos momentos, teve desconforto respiratório e recebeu doses de morfina.

    A dor de doentes em fase terminal só passou a ser combatida no fim da década de 60, com a humanização da medicina. Uma das primeiras especialistas a esboçar esse tipo de tratamento como uma área com fronteiras próprias, o chamado tratamento paliativo (do latim pallium, manto), foi a médica inglesa Cicely Saunders (1918-2005). Ao cuidar de homens com câncer avançado, ela se sensibilizou com o padecimento a que assistia e criou um instituto especializado em atenuar os sintomas dos doentes terminais, o St. Christopher’s Hospice, hoje uma referência mundial. Disse Ana Bea, num resumo do que imaginava legar: “É tão bom chegar aqui desse modo; estou realizando o sonho da minha vida morrendo dessa forma”.

    Continua após a publicidade

    Publicado em VEJA de 4 de abril de 2018, edição nº 2576

    VEJA TAMBÉM:

     

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.