“Rebelde”, assim é conhecido o padre Júlio Lancellotti, da paróquia São Miguel Arcanjo, da Arquidiocese de São Paulo. Acusado diversas vezes pelas alas mais tradicionais da Igreja Católica de ir contra o bom comportamento do cristianismo, o sacerdote, de 71 anos, dedica-se, há 35, a apoiar os mais vulneráveis. Em sua trajetória, além de pessoas em situação de rua, já realizou trabalhos com a população LGBTQI+, pessoas com HIV e jovens encarcerados. Ativista dos direitos humanos, o presbítero é, constantemente, vítima de ameaças e já foi, até mesmo, processado pelo presidente Jair Bolsonaro – enquanto ele ainda era deputado – por chamá-lo, durante discurso religioso, de ‘racista, machista e homofóbico’. Apesar disso, o pároco não abre mão de se posicionar politicamente, especialmente quando trata-se de defender as minorias. Em conversa com a VEJA, o padre Lancellotti fala sobre pecado, marxismo e conservadorismo.
Em junho, viralizou na internet um vídeo do padre Edson Adélio Tagliaferro, de Artur Nogueira no interior de São Paulo, dizendo que quem votou no presidente Jair Bolsonaro cometeu um pecado e deveria se confessar. O senhor acredita nisso? Penso que é uma linguagem religiosa usada para chamar atenção para a responsabilidade social dos seus atos. Para que algo seja pecado, segundo a doutrina católica, você precisa saber que algo é errado, ter liberdade de optar, saber as consequências e ainda fazê-lo. Eu nunca vi ninguém confessar que apoiou uma forma política, econômica e social que causou a fome de tantos. Ninguém virá no confessionário falar que votou no Bolsonaro, mas é necessário entender que as nossas escolhas têm consequências e ninguém deve votar pensando somente em si, mas pensando nos indígenas, nos quilombolas, na comunidade LGBTQI+, nos desempregados.
Muitos católicos votaram no presidente por conta da agenda contra o aborto, algo bastante caro para a Igreja Católica. Não é um argumento plausível? Acredito que essa desculpa de que votou em alguém por causa de aborto é uma cortina de fumaça. Ninguém está pensando em aborto na hora de votar, é uma falsa bandeira. Que ótimo a pessoa ser contra o aborto, mas ela protege e defende as mulheres violentadas? Sabe se o candidato em questão é misógino e acha que feminicídio é invenção da esquerda? A discussão sobre o tema não pode ser desvinculada do corpo, da dignidade e da vida da mulher. Isso é uma cortina de fumaça moralista que empobrece a discussão, usada por neopentecostais para enganar o povo.
O senhor acredita que essas pautas morais não são caras para os eleitores? A sociedade em muito já se emancipou do moralismo. Em algumas eleições passadas, falar de camisinha ou anticoncepcional era uma celeuma. Hoje, ninguém liga mais. Acho que essa coisa moral é uma bela desculpa para esconder o neofascismo, o autoritarismo e o rechaço aos pobres. Se a pessoa diz “eu sou contra o aborto, mas não me importo que mate os índios. Eu sou contra o aborto, mas não sou contra o genocídio da juventude negra. Eu sou contra o aborto, mas não sou contra a higienização racial”, tem alguma coisa de errada nisso. Se eu sou contra o aborto, eu sou contra toda a forma de violência, porque aquele que não foi abortado, agora é chacinado.
Muitos movimentos de esquerda – como a própria teologia da libertação – têm sua base no marxismo, que deu origem a muitos regimes que se opuseram à Igreja Católica. Não é compreensível que seja visto com restrição? É a mesma coisa que a China descobrir a vacina para o novo coronavírus e a gente dizer “não vamos tomar porque os chineses são comunistas”. O marxismo tem pontos que diferem da doutrina cristã, mas não é o inventor da luta de classes. Hoje, em alguns países, priorizamos o capital à vida. Nós temos instrumentos de análise da realidade e o marxismo é um deles, não cabe a nós negar o método porque foi utilizado por uma ideologia inadequada. Seria o mesmo que não aceitar nenhum princípio humanista do iluminismo francês porque eles eram anticlericais, rejeitar a psicanálise porque (Sigmund) Freud era ateu ou a relatividade de (Albert) Einstein porque não era católico. Levando tudo ao pé da letra, eu não poderia ler Jorge Amado, Érico Veríssimo, Victor Hugo. Seria um avestruz enterrado com a cabeça no chão.
Os setores conservadores na Igreja têm crescido muito – um movimento expresso, inclusive, no aumento da procura por missas em latim. O que pode estar por trás disso? As pessoas estão buscando segurança. O maior medo que nós temos é o medo da liberdade, de sermos responsáveis pelas nossas escolhas. Eu acho que as pessoas gostam da missa em latim porque não entendem nada; não se comprometem e ficam no devocionismo, negando o cerne do evangelho. Alguém em sã consciência diz que, no seu imaginário, Jesus era contra as mulheres, defendia os poderosos e a riqueza? Quem tem fé cristã sabe muito bem que não. A solidariedade, a compaixão e a misericórdia não são questões religiosas, mas questões humanas.
O senhor foi atacado nas redes por posar ao lado de uma mãe de santo. As críticas incomodam? Não, eu peço a benção a todas as mães de santo. Temos que ter o compromisso de apoiar e defender as religiões de matriz africana, não importa o conteúdo delas. Defender as religiões de matriz africana, judeus, budistas, ou seja, o debate ecumênico, é fundamental na compreensão da igreja e do cristianismo.
Como avalia as críticas sofridas pelo Papa Francisco? O Santo Padre tem mais importância fora da Igreja do que dentro dela, e acho que corre mais risco no Estado do Vaticano que no Estado Islâmico, por causa desse conservadorismo, esse sectarismo que faz as pessoas se acharem melhores que as outras. O Papa Francisco é uma pessoa simples e aberta, e fazem com ele como fizeram com São Francisco: ninguém andava atrás dele soltando passarinhos. Sentiam raiva dele e o maltratavam porque ele contestava a burguesia.
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Clique e AssineO senhor continua a receber ameaças pelo seu trabalho? Outro dia desses eu recebi uma mensagem no Instagram que dizia “você só fala coisas que são contra a fé, vai queimar no inferno”, eu respondi “você é procurador de Deus?”. Mas acho que desde que começou a pandemia, o comportamento das pessoas mudou. Antes, quando eu estava na rua ajudando os pobres, as pessoas me chamavam de vagabundo. Hoje elas buzinam e fazem sinal de positivo. Acredito que, nesse momento, nossa fé e coerência foram postas à prova e nós permanecemos.
Sendo integrante do grupo de risco, não tem medo de continuar nas ruas? A gente sente preocupação, mas, com todos os cuidados, o trabalho não pode parar.