Quando se estuda Jesus Cristo, nem sempre a figura histórica está em harmonia com a divina. Pesquisadores do período em que ele viveu relutam em acreditar que José tenha se deslocado de Nazaré a Belém para Maria dar à luz a criança. A cidade de Belém, que fica na região hoje chamada de Cisjordânia, a cerca de 160 quilômetros de Nazaré, é a terra natal de Davi, onde ele foi coroado rei dos judeus, e talvez tenha sido incluída no enredo a fim de reforçar a profecia em torno do Salvador. A própria data de nascimento foi arbitrariamente fixada pela Igreja Católica para fazer o Natal prevalecer sobre as festas pagãs de fim de dezembro que marcavam o início do inverno no Hemisfério Norte. Assim, foi com certa incredulidade que a comunidade científica recebeu a notícia de que a casa onde Cristo viveu estaria localizada no subsolo de um convento em Nazaré.
A história do Convento das Irmãs de Nazaré, ao norte de Israel, tem origem tão remota quanto a saga do homem — aqui no sentido histórico — que lançou a mais influente religião do mundo ocidental: o cristianismo e todas as suas vertentes. Para entender o caso, é preciso fazer uma breve viagem no tempo. Quando o Império Romano se esfacelou na Itália no século IV, ele ainda prosperou por um milênio no Oriente. Essa nova Roma — cuja capital era Bizâncio, rebatizada de Constantinopla e finalmente de Istambul, na atual Turquia — já havia se convertido ao cristianismo quando começaram as peregrinações às cidades sagradas de Jerusalém, Belém e outras da região comumente chamada de Terra Santa. Em Nazaré, na passagem do século IV para o V, foi erguida uma igreja bizantina sobre a antiga estrutura de uma casa de pedra e argamassa parcialmente escavada na encosta de um morro. Pelo jeito, não era uma residência qualquer, pois o templo, chamado de Igreja da Nutrição (uma vez que seria o local onde Jesus foi criado), passou a ser ponto recorrente de parada de peregrinos até ser destruído, reconstruído e depois consumido pelo fogo, provavelmente no século XIII.
Quando freiras francesas se instalaram ali, no século XIX, as ruínas estavam praticamente intocadas havia décadas. Elas então escavaram o subsolo em busca de algo que corroborasse a história de que aquela teria sido a casa de Jesus, mas não tinham os recursos financeiros nem científicos para isso. Ainda assim, conseguiram juntar artefatos para montar um pequeno museu. Em 1914, uma igreja austera no estilo franciscano foi erguida sobre a estrutura que teria sido a oficina de José e batizada com o nome dele, mas a maior parte do sítio arqueológico ficou esquecida.
O assunto só voltaria à tona em 2006, com a chegada ao sítio do professor Ken Dark, doutor em arqueologia e história pela Universidade de Cambridge. Buscando encontrar evidências da igreja bizantina perdida, ele recebeu autorização para estudar o local. Dark tem escrito ensaios desde então e lançou um livro neste ano sobre o Convento de Nazaré, ainda sem tradução para o português. O que o arqueólogo postula é que as ruínas no subsolo são do século I. Usada como cava e cripta pelos bizantinos, a habitação foi mantida razoavelmente preservada ao longo dos anos, o que leva a crer que tinha significado para os cristãos. Ela foi solidamente construída por alguém que dominava o ofício. Teria sido José? Dark admite que não tem prova irrefutável e sim um conjunto de evidências que poderiam sustentar a teoria. José era um artesão hábil, definido no Novo Testamento, em grego, como um “tekton”, artífice que tanto poderia ser um carpinteiro como um pedreiro.
A casa é de pedra calcária, material de preferência dos judeus do primeiro século. Outros artefatos de calcário foram encontrados, bem como potes de cozinha quebrados. Como foi parcialmente escavada na pedra, tem um lance de escadas e teria sido avarandada. Uma das entradas foi preservada, assim como parte do chão original de cal. Mosaicos do período bizantino foram instalados ali posteriormente, indício de que os antigos reconheciam que se tratava de um lugar de devoção.
Segundo a crença, o nascimento do Salvador teria sido anunciado pelo Arcanjo Gabriel a Maria em um local perto da casa de José, onde hoje se encontra a Basílica da Anunciação, a poucos metros do convento. As Irmãs de Nazaré trabalham pela comunidade desde que lá se instalaram. Construíram também uma escola e uma hospedaria para peregrinos, abertas a visitação, contanto que previamente agendada.
Como é comum ocorrer em investigações arqueológicas complexas, o trabalho do professor Dark não escapa ileso. O pesquisador René Salm, especialista nas origens da cristandade, afirma que as conclusões do arqueólogo são apenas interpretativas. Salm argumenta que o subsolo do convento teria sido erguido muitos anos depois do período de Cristo e que a construção era tipicamente usada para atividades funerárias e agrícolas, e não como residência. O Jesus histórico, neste caso, não estaria em conflito com o Jesus divino, mas apenas com a arqueologia — uma ciência tão sujeita a erros e acertos quanto os seres humanos que a estudam.
Publicado em VEJA de 23 de dezembro de 2020, edição nº 2718