Eram 6h25 da manhã da quarta 17 quando um promotor e seis policiais chegaram à casa do ex-presidente do Peru Alan García com uma ordem de prisão preventiva por dez dias. Ele os atendeu postado no meio da escada que leva ao 2º andar. No meio da leitura da ordem, disse que telefonaria para seu advogado, subiu e trancou-se no quarto. Os policiais correram, mas ao chegar ouviram o tiro. García, que completaria 70 anos em maio, disparou contra a própria cabeça. Foi socorrido, porém morreu horas depois no hospital Casimiro Ulloa, em Lima. Negou até o fim a acusação de que recebeu propina da empreiteira brasileira Odebrecht.
Presidente do Peru por dois mandatos, em 1985-1990 e 2006-2011, foi no segundo governo que teria cometido os crimes de que é acusado, durante a construção da linha 1 do metrô da capital peruana. Sempre proclamando inocência, no fim do ano passado ele saiu do país sem autorização e buscou asilo no Uruguai, que o negou. Um dia antes de morrer escrevera no Twitter não existir “nenhuma pista ou evidência” de seu envolvimento em atos ilícitos. O suicídio de García lembra o salto para a morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, em 2017, traumatizado por uma prisão preventiva decretada por Érika Marena, juíza vinda da Operação Lava-Jato. Mas há diferenças, além da distância geográfica: no caso peruano, as provas são robustas; no de Cancellier, a acusação era infundada.
Afora o Brasil, em nenhum outro país as investigações sobre propinas pagas pela Odebrecht no exterior caminharam tanto quanto no Peru. O Ministério Público de lá se empenhou junto ao MPF brasileiro para ir fundo na busca de evidências, ajudado por reportagens reveladoras na imprensa. Resultado: além de García, outros três ex-presidentes estão enredados na Lava-Jato peruana, que trabalha com um total de subornos na faixa dos 30 milhões de dólares entre 2005 e 2014. Ollanta Humala (2011-2016) ficou detido durante nove meses e aguarda julgamento. Alejandro Toledo (2001-2006) fugiu para os Estados Unidos, e sua extradição já foi requisitada. Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018), de 80 anos, está à beira da prisão. Ele sofreu uma crise de hipertensão no dia do suicídio de García e foi hospitalizado.
Também se encontra presa, acusada de receber 1,2 milhão de dólares, a líder da oposição, Keiko Fujimori (filha de Alberto Fujimori, o quinto ex-presidente enredado na Justiça, só que, no seu caso, não se trata da Lava-Jato, e sim de atentado a direitos humanos). “A corrupção no Peru é muito profunda, antiga e generalizada. É quase um estilo de fazer negócio, de fazer com que as coisas funcionem. Sem ela, as obras ficam paralisadas”, disse a VEJA o economista peruano Augusto Álvarez Rodrich.
A Odebrecht consolidou sua presença no exterior há cerca de trinta anos — em 1993, atuava em dezenove países de quatro continentes. O impulso para a expansão na América Latina ocorreu nos dois governos de Lula, sobretudo no segundo: em 2007, os financiamentos do BNDES para obras da Odebrecht no exterior quadruplicaram. Deu-se então a metástase da corrupção. Os desvios atrelados a essas obras totalizam 788 milhões de dólares em dez países da América Latina, além de Angola e Moçambique.
Ricardo Martinelli, ex-presidente do Panamá (2009-2014), onde a construtora brasileira é acusada de ter pago 59 milhões de dólares ilícitos entre 2010 e 2014, tentou se refugiar nos Estados Unidos, mas acabou extraditado e preso. Presidente no mesmo período, Maurício Funes, de El Salvador, teve a prisão decretada em junho de 2018 na leva de delações de João Santana, marqueteiro do PT, que também fez parte de sua campanha. A Odebrecht ainda é acusada de desembolsar 98 milhões de dólares não declarados nos governos dos venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro, e 35 milhões para Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, entre 2007 e 2014. Muita água ainda deve rolar no lava-jato das propinas tipo exportação.
Com reportagem de Fernando Molica
Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631
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