Em sua edição da semana passada, VEJA trouxe trechos inéditos do depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, em que ele revela à Polícia Federal detalhes das reuniões ocorridas no final de 2022 no Palácio da Alvorada, onde teria sido discutido um plano para anular as eleições e prender autoridades como o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. Os detalhes da trama teriam sido comunicados aos comandantes militares. Dois deles, o do Exército e o da Aeronáutica, desestimularam a empreitada golpista. O da Marinha teria colocado as tropas à disposição. Contextualizadas, as informações não deixam margem a dúvidas sobre as intenções golpistas do ex-presidente, o que, num primeiro momento, pode resultar numa acusação contra ele pelos crimes de tentativa de abolição do Estado democrático de Direito e golpe de Estado. Mauro Cid, por isso, é a testemunha que assombra o antigo chefe — situação da qual, ultimamente, ele tem se esforçado para se desvencilhar.
Na segunda-feira 11, o ex-ajudante de ordens prestou um novo depoimento, o sexto desde que assinou um acordo de colaboração com a polícia. O conteúdo é mantido em sigilo, mas consta que o coronel teria dado informações que preencheram lacunas importantes da trama golpista. No papel de colaborador, Cid não pode mentir. Se o fizer, perde os benefícios legais que conseguiu e pode, em último caso, voltar à prisão, onde já esteve por 129 dias, acusado de falsificar cartões de vacinação. Há, porém, algo estranho acontecendo em relação ao comportamento do ex-ajudante de ordens. Recentemente, ao reclamar da pecha de delator, ele não só protestou contra o título como ainda defendeu Jair Bolsonaro. “Não sou traidor, nunca disse que o presidente tramou um golpe. O que havia eram propostas sobre o que fazer caso se comprovasse a fraude eleitoral, o que não se comprovou, e nada foi feito”, afirmou. A declaração não faz nenhum sentido quando confrontada com os fatos que ele revelou à polícia.
Os depoimentos do coronel combinados com os documentos colhidos pelos investigadores compõem um mosaico repleto de evidências de que Bolsonaro e seus principais auxiliares realizaram um minucioso estudo que visava contestar as eleições, prender autoridades que se colocassem contrárias à iniciativa e, se necessário, usar a força militar para garantir o sucesso da operação. Para a PF, já há evidências mais do que suficientes para indiciar o ex-presidente no inquérito que deve ser concluído até o meio do ano — e o testemunho de Cid é peça-chave para unir as várias pontas da apuração. Um recuo do coronel neste momento, além de comprometer todo o trabalho, lhe traria uma infinidade de problemas. Para manter os benefícios, os termos pactuados da colaboração devem ser cumpridos à risca. O acordo estabelece que, em caso de condenação, a pena máxima para o ex-ajudante de ordens seria de dois anos — uma considerável diminuição para quem tinha no horizonte a perspectiva de sentenças que, somadas, podem chegar a mais de uma década de cadeia.
Vale ressaltar que, desses dois anos de prisão, Cid já cumpriu quase a metade, somando os quatro meses em que ficou detido preventivamente mais o período de uso da tornozeleira eletrônica, que é computado como tempo de cumprimento de pena. O coronel também garantiu no acordo que seus familiares serão poupados de qualquer punição, assim como seus ex-auxiliares que foram presos. Ou seja, um recuo agora pode complicar a vida dele, da família e de alguns de seus colegas de farda. Caberá ao ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito sobre os atos golpistas do dia 8 de janeiro, definir ao final da investigação o “prêmio” concedido ao ex-ajudante de ordens, que será deverá ser proporcional à relevância de sua contribuição para o esclarecimento do caso. Não foi por coincidência que, antes da oitiva de segunda-feira, a polícia fez correr a informação de que qualquer omissão ou mentira do coronel poderia levar ao cancelamento do acordo.
Mauro Cid, porém, está assustado. Desde que assumiu o papel de colaborador, ele tem recebido recados pouco amigáveis e notícias nada alvissareiras. No fim do ano passado, por exemplo, encaminhou ao Exército a documentação necessária para a sua promoção a coronel. A avaliação acontecerá no próximo mês e, por alguma razão, o tenente-coronel ainda alimentava a esperança de ascender dentro da força. O Ministério da Defesa, no entanto, já comunicou que isso não acontecerá. O assunto já foi tratado em uma conversa entre o ministro José Múcio e o comandante da Força, general Tomás Paiva, que sacramentou o que pode ser o fim da carreira militar do ex-ajudante de ordens. Cid também teme pela segurança dele e da família e, talvez por isso, tenta poupar o ex-presidente ao afirmar agora que ele nunca tramou golpe, apesar de todas as evidências. Na versão do tenente-coronel, o decreto que previa subverter o regime democrático seria apenas um plano de contingência a ser colocado em prática, caso ficasse comprovada a suspeita de que as eleições haviam sido fraudadas. Se essa afirmação se resumir a uma tentativa de aplacar a ira do ex-chefe e seus apoiadores mais radicais, Cid pode estar trilhando uma rota perigosa. As cláusulas do acordo de colaboração, como se viu, são muito objetivas. Além de não poder mentir, o coronel só terá direito aos benefícios se as informações repassadas à polícia tiverem efetividade, ou seja, ajudarem a desvendar a trama — e não o contrário.
Nas redes sociais, Cid tem recebido ameaças e mensagens enigmáticas sobre a rotina de seus familiares que, compreensivelmente, lhe tiram o sono. Além disso, generais que acompanham o caso de perto já advertiram que, de fato, o colega tem de se cuidar. “O grande medo da família é que me coloquem como traidor. Daqui a pouco tem um maluco aí querendo fazer alguma coisa comigo”, desabafou Cid recentemente. Nas tratativas com a Polícia Federal, ele expressou uma preocupação com possíveis retaliações e deixou clara a intenção de sair do Brasil. Como não é possível, solicitou segurança especial. Desde maio do ano passado, quando foi preso, soldados do Exército patrulham as proximidades da casa onde ele mora, no Setor Militar, em Brasília. Temores à parte, Cid sabe que está solto apenas porque decidiu revelar fatos que viu de perto, fatos que, por mais que ele tente minimizar, demonstram que seu ex-chefe e setores militares no mínimo flertaram com a ideia de um golpe, o que é crime.
Por mais estranho que pareça, Jair Bolsonaro continua tratando Mauro Cid como um “bom garoto”, continua ressaltando que o considera como um filho, mesmo depois das revelações que o deixaram numa situação jurídica extremamente delicada. Atentar contra o Estado democrático de Direito, vale repetir, pode resultar em até vinte anos de prisão. Na outra ponta, o tenente-coronel continua repetindo que sempre cuidou do capitão como se ele fosse seu pai, que espera que essa tormenta acabe o mais rápido possível e que acredita até na possibilidade de o ex-chefe voltar a ocupar a cadeira de presidente da República. “Se isso acontecer, tenho certeza de que ele não vai me esquecer”, diz. Uma coisa é certa: diante dos fatos que já são conhecidos e confirmada a hipótese de um eventual recuo, é possível que os dois — coronel e capitão — terminem de fato essa história novamente juntos — mas não será no Palácio do Planalto.
Publicado em VEJA de 15 de março de 2024, edição nº 2884