Na manhã de quarta-feira 24, Jair Bolsonaro e seus principais assessores estavam visivelmente animados. O balanço da primeira semana de campanha, ao menos até aquele momento, tinha se mostrado altamente positivo. O desempenho do presidente na entrevista à Rede Globo foi considerado melhor do que o esperado e as pesquisas começaram a apontar um suave viés de alta em seus índices de intenções de voto. O principal motivo do entusiasmo, no entanto, veio de onde não se imaginava. Vinte e quatro horas antes, na terça-feira, agentes da Polícia Federal, autorizados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, realizaram uma operação de busca nos endereços de oito empresários que trocavam mensagens através de um aplicativo, supostamente defendendo um golpe diante da possibilidade de o ex-presidente Lula vencer as eleições de outubro. Obrigados a entregar seus celulares, computadores e tablets, os empresários foram instados a prestar depoimento, tiveram os sigilos bancário e telemático quebrados e as contas nos bancos e nas redes sociais bloqueadas. Em teoria, o episódio representaria um desgaste para o governo, já que alguns dos investigados são notórios apoiadores do presidente. Também serviria como argumento para Bolsonaro retomar os ataques ao STF, particularmente a Alexandre Moraes, a quem já acusou de perseguição e xingou de canalha.
Não foi o que aconteceu. Na mesma terça-feira, com a operação policial ainda em andamento, o presidente participou de um almoço com alguns dos mais importantes empresários do país. O assunto, claro, dominou as rodas de conversa. Bolsonaro ouviu reclamações e foi perguntado diversas vezes sobre um provável exagero na decisão de Moraes. A inquietação, em síntese, era derivada de um receio de que o ministro, ao autorizar buscas e quebra de sigilo bancário a partir de mensagens privadas sem evidências claras de prática de algum ilícito, estaria lançando mão de métodos similares aos utilizados na Lava-Jato. Alguns empresários, acertadamente, ponderaram que investidas de força como essa criam um clima de instabilidade no mercado, afetam o ambiente de negócios e, em último caso, podem até levar empresas à bancarrota — o que, de fato, aconteceu com as empreiteiras Odebrecht e OAS. Mais contido do que o normal, o presidente comentou apenas que, até onde sabia, a ação policial parecia desproporcional e lembrou que suas críticas ao STF miravam exatamente essas intervenções controversas. “Os empresários perceberam que amanhã qualquer um pode ser envolvido num enredo parecido, e nem precisa ser bolsonarista”, disse um auxiliar do presidente que acompanhou a reunião. Em razão disso, segundo esse mesmo auxiliar, Bolsonaro obteve a solidariedade de representantes de um setor eleitoralmente influente mas refratário à sua reeleição — daí o entusiasmo.
As mensagens que provocaram a decisão de Alexandre de Moraes, reveladas pelo site Metrópoles, foram postadas num grupo de WhatsApp criado no ano passado e do qual fazem parte expoentes do bolsonarismo, como Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, o empreiteiro Meyer Nigri, fundador da Tecnisa, o dono do grupo Coco Bambu, Afrânio Barreira, o proprietário do shopping Barra World, José Koury, além de empresários como Ivan Wrobel, da W3 Engenharia, Marco Aurélio Raymundo, das lojas Mormaii, e José Isaac Peres, da Multiplan. Nos diálogos, um diz preferir “golpe do que a volta do PT”, outro pondera que “golpe foi soltar o presidiário”, se referindo ao ex-presidente Lula, e um terceiro afirma que “o golpe teria de ter acontecido nos primeiros dias de governo”. As mensagens também versavam sobre teorias conspiratórias envolvendo a manipulação do resultado das eleições. “Todo esse desserviço à democracia dos três ministros do TSE/STF faz somente aumentar a desconfiança de fraudes preparadas por ocasião das eleições. O Datafolha infla os números de Lula para dar respaldo ao TSE por ocasião do anúncio do resultado eleitoral”, escreveu Meyer Nigri, um dos empresários mais próximos ao presidente.
Desde 2019, Alexandre de Moraes conduz inquéritos que apuram a ação de supostas milícias digitais e a disseminação de notícias falsas e ataques às instituições democráticas. A investigação, sigilosa, já levou à prisão militantes bolsonaristas que promoveram manifestações em defesa do fechamento do Supremo e blogueiros que faziam pregações golpistas — medidas que encontram total amparo na legislação e serviram para conter uma escalada de investidas concretas contra o Poder Judiciário. A decisão do ministro autorizando as buscas e a quebra do sigilo bancário dos empresários, porém, dividiu juristas. Para alguns, as medidas podem se justificar caso, além dos desatinos escritos, existam mais informações sobre um financiamento de manifestações ou campanhas digitais por parte dos empresários. Para a maioria, porém, o ministro pode ter se excedido — o que reforça o temor de um Estado excessivamente punitivo, que ultrapassa limites constitucionais se assim o desejar. A rigor, as mensagens dos empresários não sugerem um movimento orquestrado ou um crime que levasse ao bloqueio de seus patrimônios. Vários ali naquele grupo nem sequer concordaram com as opiniões escritas pelos colegas. Ou seja: até aqui, foi um risco desnecessário a um importante armistício. Mas, como as investigações são protegidas por segredo (ninguém além de Moraes tem acesso ao processo), não se sabe se há outros fatos ou circunstâncias que justifiquem a decisão.
A polêmica aumentou ainda mais depois que a Procuradoria-Geral da República se manifestou formalmente sobre o caso. Na quarta-feira, a vice-procuradora-geral Lindôra Araújo afirmou, em recurso ao STF, que “da cópia da decisão, não se vislumbra, de início, presença de autoridade com prerrogativa de foro a ensejar atuação do Supremo Tribunal Federal, nem se verifica quais seriam os elementos já colhidos na investigação em curso que corroborariam a necessidade das medidas constritivas adotadas” contra os empresários. Em outras palavras, para que se configurasse crime de abolição do estado democrático de direito, como cogitado por alguns, seria necessário ter havido violência ou grave ameaça às instituições, o que, pelas mensagens que vieram a público, não está nem de longe demonstrado. Segundo interlocutores de Alexandre de Moraes, o sigilo da decisão que determinou as buscas contra bolsonaristas “somente será levantado quando não houver mais risco de prejuízo à investigação”. Para botar mais lenha na fogueira, o site Jota noticiou que a polícia encontrou nas buscas uma troca de mensagens entre o procurador-geral Augusto Aras e um investigado — o que, em princípio, também não significa absolutamente nada além de intriga. Aras e Meyer Nigri são amigos de longa data.
Alexandre de Moraes já disse a interlocutores que não acredita no risco de um golpe de Estado e até se diverte com o temor que o inquérito sob seu comando provoca no presidente da República e em alguns auxiliares do governo. Tanto que, no início deste mês, Paulo Guedes, o chefe da Economia, fez chegar ao ministro uma proposta de trégua. O presidente cessaria os ataques ao STF e, em contrapartida, Moraes concluiria as investigações que se arrastam há mais de três anos. Não houve um acordo, mas, para mostrar que existia algum entendimento, Moraes foi ao Palácio do Planalto entregar em mãos ao presidente o convite para a cerimônia de sua posse no Tribunal Superior Eleitoral. Bolsonaro, por sua vez, garantiu presença na solenidade. Na entrevista à Rede Globo, o presidente foi questionado sobre os xingamentos ao ministro. “Hoje, ao que tudo indica, está pacificado. Espero que seja uma página virada”, respondeu, emitindo mais um sinal de que a bandeira branca continuava estendida. O presidente não sabia que, naquele instante, a ordem de busca contra os empresários já estava autorizada pelo ministro. E jamais imaginou que algo assim pudesse acabar gerando dividendos a seu favor.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804