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Pensamento circense

O Brasil de Bolsonaro está se convertendo em um picadeiro para malabarismos históricos dos mais bizarros. Parece só folclórico, mas há consequências graves

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 5 abr 2019, 07h00 - Publicado em 5 abr 2019, 07h00

Deve ter sido fake news criada pelos iluministas para ridicularizar a Igreja. A lenda, ainda assim, se consagrou: consta que os teólogos medievais se dedicavam a debater quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Nas últimas semanas, o Brasil vem discutindo temas não tão etéreos, mas bem mais esdrúxulos: o nazismo seria um movimento de esquerda? E o regime militar instaurado no Brasil em 1964 terá sido mesmo uma ditadura? A resposta inequívoca a essas questões é, pela ordem, “não” e “sim”. Mais recomendável, porém, será evitar, nas situações sociais cotidianas, aquele chato que vem nos trazer a verdade revelada do esquerdismo de Hitler e do heroísmo do general Médici. Pena que aos brasileiros essa opção foi negada: o nazismo de esquerda e a quartelada democrática que nos salvou do comunismo no 31 de março foram temas impostos ao país pelo mais alto mandatário do Executivo e por seus ministros — em particular, o bizantino Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, que vê demônios globalistas dançando na cabeça de qualquer um que critique seu cruzadismo. Este é um governo que promove ativamente teses que até ontem só vicejavam nos recessos insalubres da baixa blogosfera direitista.

O absurdo historiográfico patrocinado pelas mais altas autoridades do país não é mero colorido folclórico da “nova política” que se anuncia desde a campanha eleitoral. Bolsonaro devota-se a essas asneiras com uma paixão que não demonstra em temas realmente cruciais para o Brasil. Foi o presidente que ordenou a comemoração, nos quartéis, do golpe de 1964 , e foi ele que, na terça-feira 2, saiu de uma visita ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, dizendo que o nazismo foi “sem dúvida” de esquerda — ecoava assim afirmações do chanceler Araújo em seu blog, Metapolítica. Com a bênção do “mito”, o Brasil se vê engolfado em um mal-ajambrado revisionismo histórico. É o império do que João Cezar de Castro Rocha, crítico literário e professor da Uerj, definiu, em sua coluna em VEJA, como “analfabetismo ideológico”.

“DEMOCRACIA DE FORÇA” - O presidente-general Médici: ditador que salvou o país da ditadura (Associated Press/.)

Castro Rocha cunhou o termo a partir da expressão corrente “analfabetismo funcional” — a incapacidade de entender e interpretar corretamente um texto. O analfabeto ideológico, porém, maneja bem as armas da retórica. “Analfabetismo ideológico significa reduzir o ato de leitura a uma projeção no texto de um sentido previamente determinado pela ideologia do leitor”, define Castro Rocha. Como o analfabeto ideológico tem um “razoável nível de competência”, sua habilidade para distorcer fatos seria “potencialmente infinita”. O golpe de Estado que destituiu João Goulart transforma-se assim na Revolução Redentora que salvou o país do comunismo. E a ditadura que cassou políticos — inclusive apoiadores de primeira hora como Carlos Lacerda —, censurou a imprensa, matou e torturou opositores converte-se no regime benfazejo que preservou a democracia brasileira. Um governo de orientação liberal ou conservadora poderia, sim, propiciar um ambiente no qual certas mistificações da esquerda fossem contestadas — em especial, a exaltação, sem nenhuma autocrítica, de guerrilheiros que assaltavam bancos e sequestravam embaixadores sonhando com uma Cuba de dimensões continentais no sul da América. A tese propalada pelos bolsonaristas, porém, quer negar a natureza claramente autoritária dos governos militares que esses movimentos desejavam derrubar.

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Para atestar sua tese de que o nazismo é de esquerda, Bolsonaro aventou um argumento que caberia em um meme do Facebook: o nome oficial do partido nazista alemão era Partido Nacional Socialista. Socialismo é de esquerda, ergo… No pós-guerra, a Alemanha Oriental, comunista, chamava-se oficialmente República Democrática da Alemanha. Alguém dirá que se tratava de uma democracia de fato? Ernesto Araújo, em seu blog, tentou fundamentar a tese a partir das similaridades entre nazismo e comunismo, entre elas a rejeição da democracia liberal e a centralidade absoluta do Estado. São temas examinados no clássico Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt — mas a filósofa alemã não cometeu o despautério de alinhar à esquerda o nazismo, reconhecido a seu tempo como um movimento nacionalista direitista. Nascida na Assembleia Nacional Francesa, no século XVIII, a divisão do campo político em esquerda e direita é fluida — muda conforme o tempo e o lugar —, mas há um firme consenso sobre seus pontos extremos: comunismo à esquerda, nazismo à direita.

NA TRINCHEIRA – Kataguiri e Marx: o deputado diz que o filósofo revisou teorias depois da morte (Eduardo Knapp/Folhapress - Imagno/Getty Images)

Nesses dois casos, está em cena um fenômeno que a psicologia social designa como “polarização factual” — no qual grupos políticos discordam não só sobre interpretações ou visões ideológicas, mas sobre fatos estabelecidos. Thomas Conti, economista e professor do Insper, recentemente explicou o conceito em um artigo esclarecedor no portal Estado da Arte, do jornal O Estado de S. Paulo. Conti não citou exemplos da política nacional, mas o conceito é adequado à propaganda ideológica do governo. “Ditadura é uma forma de governo bem definida, caracterizada por diversos limites à participação política dos cidadãos”, disse Conti a VEJA. Não há dúvida, portanto, de que o regime de 1964 foi ditatorial. Conti considera que ainda existe um debate razoável sobre a natureza do nazismo, sobretudo a partir de Hannah Arendt. Mas a afirmação categórica de que o nazismo é de esquerda constitui um “revisionismo histórico forte”, e nesse sentido cabe na polarização factual. O reforço de identidades grupais é bem servido pela polarização. E o confronto com o grupo adversário é importante: não por acaso, Araújo diz que “a esquerda fica apavorada” quando se empurra o nazismo para seu campo.

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A polarização delirante produz aberrações que são até divertidas. Em um programa na rádio Jovem Pan, Maristela Basso, professora de direito da USP, entusiasmou-se na crítica à ditadura da Venezuela: disse que seu remoto inspirador, Simón Bolívar, viveu em um tempo no qual “as leituras de Marx e Lenin” estavam no auge. Bolívar morreu em 1830, quando o futuro autor de O Capital contava tenros 12 anos; Lenin nasceria quarenta anos depois. A anedota fica ainda mais engraçada quando se considera que Marx desprezava Bolívar: escreveu para uma enciclopédia americana um verbete cáustico sobre o “Libertador”, a quem também chamou, em carta ao amigo Friedrich Engels, de “o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas”. O deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), em um vídeo depois apagado do canal MBL no YouTube, prestou-­se a explicar o duvidoso conceito de “marxismo cultural”. Começou com uma explanação escolar do pensamento de Marx, e já errou dizendo que, no esquema geral das mudanças revolucionárias preconizadas pelo filósofo, o socialismo viria depois do comunismo (é o contrário). E logo veio o anacronismo selvagem: Kataguiri afirmou que Marx revisou certas ideias a partir da I Guerra Mundial. Marx morreu em 1883, 31 anos antes do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, estopim do conflito.

ANACRONISMO AMERICANO –  Simón Bolívar: um marxista antes do marxismo (The Bridgeman Art Library/.)

A ignorância pode ser corrigida — mas não quando se trata de ignorância militante. Os factoides ideológicos do bolsonarismo não se limitam a bobagens ditas em canais do YouTube, a opiniões esquisitas proferidas em passeios por Israel ou à ordem do dia dos quartéis. São parte da política do Estado. O inacreditável ministro da Educação, Vélez Rodríguez, já anuncia livros didáticos que negarão a ditadura militar de 1964. Nesse caso, não dá mais para rir.

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Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629

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