Enquanto a eleição presidencial ganha corpo com a chegada da reta final e praticamente monopoliza o entusiasmo do eleitor em razão da polarização entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro, uma outra guerra eleitoral, menos barulhenta, mas tão intensa e decisiva quanto, está em curso no país: a disputa para definir qual será o perfil e quem irá comandar o Congresso a partir de 2023. Candidatos não faltam: há nada menos do que 10 570 nomes tentando uma das 513 vagas de deputado federal, um recorde histórico e 22% a mais que em 2018. Apesar de tanta gente à caça de votos, a luta pelo Legislativo não costuma atrair grande atenção dos eleitores — pesquisa da Quaest de julho mostrou que dois em cada três sequer se lembram qual deputado escolheram quatro anos atrás. Para os principais partidos, no entanto, a briga por cadeiras no Parlamento é uma das principais preocupações na campanha — em alguns casos, a maior delas.
Há velhos e novos motivos práticos pelos quais os caciques sonham com o crescimento de suas bancadas. As razões já conhecidas são o óbvio peso político de ostentar um número vistoso de votos no Congresso, fonte de poder de barganha junto a qualquer governo, e o fato de ser com base nos números de cadeiras de deputado e de votos à Câmara que será calculada a fatia que cada legenda terá dos fundos partidário e eleitoral, que somaram 6 bilhões de reais em 2022. Também é a partir da bancada de deputados que se estima o tempo na propaganda de rádio e TV. “Se tenho dez deputados, tenho uma influência no jogo político para decidir presidência da Câmara, comissões, votações importantes. Se tenho cinquenta, é outro peso”, resume Marcos Pereira, presidente do Republicanos, que vai usar até 95% do fundo eleitoral na campanha ao Legislativo. Outros dois motivos são mais recentes: a cláusula de barreira, que entrou em vigor em 2018 e impede o acesso a fundo partidário e tempo de TV caso não se atinja um patamar de votos, e o veto a coligações de legendas em eleição proporcional, aplicado pela primeira vez no pleito nacional
Com tantas boas causas sobre a mesa, algumas siglas demonstram claramente prioridade para as eleições a deputado. O PSB aumentou os recursos do fundo eleitoral para campanhas proporcionais de 55%, há quatro anos, para 80% em 2022. O PSDB, pela primeira vez sem presidenciável, elevou a cota de 23,3% para 57,5%. Partido mais rico, o União Brasil — que ficou de cofres cheios por causa das bancadas eleitas em 2018 por PSL e DEM — vai gastar 65% do dinheiro com campanhas proporcionais.
A busca por poder fica ainda mais intensa porque o Congresso de fato atingiu um alto nível de protagonismo. Sob o governo Bolsonaro, deputados e senadores aliados passaram a ter um controle maior sobre a execução do Orçamento a partir da disseminação do uso das emendas de relator. Conhecidas como “orçamento secreto”, elas aumentaram o grau de independência em relação ao governo e elevaram o poder dos líderes da Câmara e do Senado para decidir a distribuição de dinheiro, tornando a expressão “semipresidencialismo” uma definição cada vez mais real. “Para Bolsonaro manter a base fiel, terá de ampliar as concessões. Para Lula ter apoio, precisará ameaçar retirá-las”, avalia Antonio Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), resumindo o horizonte da guerra em andamento.
Um personagem-chave nesse campo de batalha é o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Aliado de Bolsonaro, o alagoano se tornou um dos homens mais poderosos do país, com um figurino de “primeiro-ministro”, que o consolidou ainda mais como uma espécie de “rei do Centrão”, grupo de partidos historicamente aliados de qualquer governo. Embora estejam de corpo e alma na coligação pela reeleição do presidente, siglas como PP, PL e Republicanos sempre fizeram da presença no Parlamento a sua força. Caso o capitão se reeleja, aliados estimam que a base aliada chegue a 350 deputados, incluindo alas bolsonaristas de partidos como MDB, PSD e PSDB. A estimativa é bastante ousada porque hoje os partidos coligados com Bolsonaro têm 179, ainda assim o maior bloco na Câmara (veja o quadro). Se isso ocorrer, Lira teria muito bem encaminhada a sua reeleição como presidente. “Deve vir um Congresso muito mais reformista e à direita que o atual. A esquerda não faz mais do que 150 deputados”, aposta Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil, coordenador da campanha de Bolsonaro e líder do Centrão. Para ele, Lira pode seguir no comando mesmo se Lula vencer: “É favoritíssimo em qualquer hipótese”.
A maior preocupação do lado de Lula é como recuperar o controle do Executivo sobre o Orçamento. O discurso corrente é o de buscar “novas relações” com o Congresso. “É preciso alterar o padrão que Bolsonaro construiu”, diz o deputado José Guimarães (CE), coordenador político da campanha de Lula nos estados. Com um passado recente recheado de escândalos calcados na compra de apoio político, não seria de esperar outra retórica de Lula, que sobreviveu ao mensalão, mas acabou condenado e preso em um processo da Operação Lava-Jato. A questão é como viabilizar um novo relacionamento caso o Centrão, já amplamente habituado ao novo jeito de distribuir dinheiro às bases, mantenha a posição de fiel da balança nas votações de interesse do governo. “Não consigo ver esses partidos fazendo oposição. Estão com um olho no Diário Oficial e o outro no naco do Orçamento”, observa o presidente do PSB, Carlos Siqueira. O primeiro passo para aumentar a margem de negociação, evidentemente, passa por ampliar as bancadas. Hoje os nove partidos que apoiam Lula têm 120 deputados, o que é insuficiente até para aprovar projetos simples. A saída será apostar na velha estratégia dos “puxadores de voto”, na qual se encaixam nomes como os do líder dos sem-teto Guilherme Boulos (PSOL-SP) e da ex-ministra Marina Silva (Rede-SP).
Embora a Câmara seja o principal foco dos partidos, também há um interesse especial pelo Senado, onde um terço das 81 cadeiras será renovado. Bolsonaro disse mais de uma vez que essa era uma de suas prioridades, após as dificuldades que teve na Casa, onde não tem maioria, como na CPI da Pandemia. O presidente patrocinou candidatos como o vice Hamilton Mourão (Republicanos-RS) e o ex-ministro Gilson Machado (PL-PE), mas nenhum lidera as pesquisas. O presidente ainda tem tempo para virar o jogo. Segundo a Quaest de junho, 42% dos eleitores consideram a opinião dos presidenciáveis ao escolher um deputado. No caso do Senado, a relação entre os presidenciáveis e seus candidatos costuma ser ainda mais direta. Lula tem alguns favoritos ao Senado, como os ex-governadores Camilo Santana (PT-CE), Flávio Dino (PSB-MA) e Márcio França (PSB-SP), enquanto mantém como um de seus principais articuladores o ex-presidente do Senado Renan Calheiros (MDB-AL), cujo mandato vai até 2027. Por ironia, é o maior rival de Lira.
Ainda que a eleição para o Congresso seja uma disputa longe dos holofotes, o desfecho da atual movimentação dos partidos para fortalecer suas posições pode ser tão decisivo para o país quanto a definição do próximo presidente da República. Por isso é importante que os eleitores prestem mais atenção na guerra surda que está sendo travada, escolhendo com toda a cautela os melhores representantes para as duas casas do Legislativo em 2 de outubro.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806