Desde que o Supremo Tribunal Federal proibiu o financiamento empresarial de campanhas eleitorais, há quase dez anos, ter um partido virou um grande negócio — e com dinheiro público. O total injetado nas legendas, via fundos partidário e eleitoral, saltou de 2,5 bilhões de reais em 2018, ano da primeira disputa com as novas regras, para 6 bilhões de reais em 2024. A dinheirama será usada para as siglas bancarem as campanhas de candidatos a prefeitos, vice-prefeitos e vereadores. Pelo critério principal de divisão desse bolo, que é o tamanho das bancadas no Congresso, o Partido Liberal (PL), que elegeu 99 deputados em 2022 (hoje tem 95), cravou um recorde: será a primeira legenda a ter mais de 1 bilhão de reais em um único ano, quase 30% a mais do que o segundo colocado, o PT, seu principal adversário no ringue das urnas. O montante vai servir para impulsionar os resultados do PL no pleito deste ano. A meta é quase triplicar o número de prefeitos eleitos (foram 349 em 2020). Se o plano der certo, serão pavimentadas as condições para alavancar a expansão da sigla em 2026 — e, dentro da lógica da roda infinita da fortuna, o partido vai engordando sucessivamente o caixa.
A situação atual representa a consolidação de uma espetacular virada para o PL. Fundado em 1985, como um dos filhotes da extinta Arena, a legenda da ditadura militar, ele era até o início dos anos 2000 um partido médio, perdido em meio ao bolo do chamado Centrão. Valdemar Costa Neto, o seu principal cacique, que assumiu o comando da agremiação após a morte do fundador, Álvaro Valle, foi um dos envolvidos no escândalo do mensalão e renunciou ao mandato de deputado federal para não perder os direitos políticos. Ele confessou ter recebido 6,5 milhões de reais dentro do esquema, entre 2003 e 2004, para quitar dívidas da campanha de Lula de 2002, que tinha o senador José Alencar, do PL, como vice. Foi para a cadeia em 2013 após a condenação a sete anos e dez meses pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. No ano seguinte, passou a cumprir prisão domiciliar e, em 2016, teve o perdão da pena graças ao indulto de Natal concedido pela presidente Dilma Rousseff. Os maiores apuros parecem ter ficado para trás. Hoje, Valdemar controla o partido mais rico e com mais tempo de rádio e de TV para divulgar seus candidatos.
Outro ponto impressionante dessa trajetória é o fato de que o PL alcançou tamanho poder e protagonismo sem que se saiba exatamente o que a legenda defende ou que propostas tem para o Brasil, fora discursos genéricos. Na política, esteve praticamente sempre ao lado do governo, nem que por um curto período de tempo. De Fernando Collor a Jair Bolsonaro, passando por Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma e Michel Temer, todo mundo teve, em algum momento, o partido como aliado. Passada a lua de mel com FHC, por exemplo, o PL de Valdemar ficou sete anos e meio como oposição ao tucano, algo que, segundo o cacique, garantiu “credibilidade” à sigla junto ao vindouro governo do PT de Lula. Anteriormente, o apoio a Collor também mudara de rumo, e o PL defendeu o impeachment do alagoano. Agora, pela primeira vez, a sigla firmou posição no campo contrário ao governo, tendo como uma de suas principais estrelas o ex-presidente Bolsonaro. No Legislativo, principalmente na Câmara dos Deputados, o PL demonstra não querer “fazer oposição por fazer” — inclusive, parte dos deputados tem apoiado matérias caras ao Planalto, como a reforma tributária e a taxação dos super-ricos. Mas, segundo levantamento da Quaest, a taxa de adesão da sigla a iniciativas de Lula é de apenas 14%. “Quando o governo apresenta um projeto com o qual concordamos, nós votamos com ele. O problema é querer aumentar impostos, e isso não vamos aceitar”, diz Valdemar. Um dos últimos conflitos foi a medida provisória, enviada pelo Ministério da Fazenda, que determinava mudanças na compensação de créditos do PIS/Cofins. Depois de resistência de parlamentares, o texto foi devolvido pelo Senado.
A decisão de fincar trincheira na oposição é uma retribuição mais que compreensível à importância que Bolsonaro tem para o partido. A ida do então presidente para o PL, no final de 2021, elevou a legenda a um novo status — só do PSL, ex-sigla do bolsonarismo, migraram 22 deputados. A bancada de 33 deputados do PL consolidada na eleição de 2018, entre altos e baixos, pulou para 42 parlamentares ainda em 2021 e, após as eleições de 2022, saltou para 99, tendo o capitão como o carro-chefe da turma — a maior bancada na Câmara. “Nós sempre conseguimos ampliar a bancada entre uma eleição e outra. Em 2002, por exemplo, elegemos 26 deputados e, em 2005, esse número já chegava a 53”, diz Valdemar. A chegada do bolsonarismo trouxe musculatura, dinheiro, tempo de TV, cacife para negociar alianças e também alguns ruídos, já que o séquito de bolsonaristas, com perfil mais radicalizado à direita, contrastava com o perfil pragmático que Valdemar e o PL sempre imprimiram a suas trajetórias (leia a entrevista). Surfando a ainda potente popularidade de Bolsonaro, que, mesmo após uma série de enroscos judiciais — na quinta, ele foi indiciado pela Polícia Federal no caso das joias sauditas por associação criminosa, lavagem de dinheiro e apropriação de bens públicos —, arrasta multidões às ruas por onde passa, a meta da legenda é chegar a 120 deputados e 25 senadores na próxima eleição (hoje tem 13) e ser o maior partido nas duas Casas do Congresso.
Não é só o posto de cabo eleitoral máximo da legenda que Bolsonaro ocupa. É ele que, com o suporte de Valdemar na “experiência e na parte administrativa do partido”, dá as cartas no PL sobre, por exemplo, a escolha dos principais candidatos neste ano. “É ele que define”, diz Valdemar. Exemplo do prestígio do ex-presidente foi a escolha do candidato a vice de Ricardo Nunes (MDB) na disputa à prefeitura de São Paulo. Após meses de idas e vindas nas negociações, Bolsonaro conseguiu a indicação de Ricardo Mello Araújo, um ex-coronel da Rota, a mais célebre tropa de choque da PM paulista. No Rio de Janeiro, fez valer a sua predileção pelo deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e figura próxima do clã Bolsonaro. O cacife do ex-presidente para impor essas definições aumentou consideravelmente depois que bancou a acertada decisão de lançar o ex-ministro Tarcísio de Freitas para o Palácio dos Bandeirantes.
Embora façam juras de amor a Bolsonaro, Valdemar e a cúpula do PL também se preparam para, eventualmente, sobreviver sem ele. É claro que nunca vão confessar isso em público, mas a conjuntura impõe pensar no cenário futuro. Declarado inelegível pela Justiça Eleitoral até 2030 e com poucas chances de reverter a condenação, o ex-presidente não deverá ter sua foto nas urnas. Por isso, a sigla irá apostar em outros cabos eleitorais importantes, como a ex-primeira-dama Michelle, que sempre viajará separada do marido, para cobrir mais cidades, e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), um dos campeões de votos da legenda. O senador Rogério Marinho (PL-RN), considerado por Valdemar como um dos quadros mais habilidosos da sigla, licenciou-se do Congresso para ser o secretário-geral do PL, com a função de coordenar a estratégia nacional na campanha. A ampliação da força no Congresso é tida como um passo fundamental para tentar a meta mais ambiciosa em 2026. “Vamos ganhar a eleição presidencial”, promete Valdemar.
O cacique não esconde que o nome preferido para essa disputa é o de Tarcísio de Freitas. “Ele é o primeiro da fila”, garante Valdemar. É dado como certo que o governador paulista trocará o partido atual, o Republicanos, pelo PL, após as eleições de 2024. Entre as qualidades do ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro são citadas a lealdade ao padrinho político, uma trajetória política imaculada e o controle da maior vitrine de obras e iniciativas do país. Na eventualidade de Tarcísio não topar a missão, Valdemar já tem planos B e C. O cacique está de olho em outras opções da centro-direita, como os governadores de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), do Paraná, Ratinho Jr. (PSD), e de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), mas defende que eles se filiem ao PL se quiserem o aval da sigla. “Sempre há tempo para esses nomes virem para o partido”, diz.
A aliança com Bolsonaro permitiu o crescimento da legenda justamente no momento em que a lei eleitoral definiu a irrigação de dinheiro público nos partidos com melhor performance. O país já tinha o Fundo Partidário, regulamentado em 1995 com a ideia de custear as operações do dia a dia dos partidos. Mas o que mudou a história foi o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, que ficou conhecido como Fundo Eleitoral, criado em 2017. Em setembro de 2015, o STF declarou, por oito votos a três, a inconstitucionalidade do financiamento eleitoral por pessoas jurídicas. A decisão veio na esteira do estupor provocado pela Lava-Jato, que escancarou vultosos esquemas de corrupção e caixa dois nas doações de empresas a campanhas. A ideia, nobre, do STF era acabar com práticas inadequadas, impedir a promiscuidade entre empresas e políticos e reduzir o desequilíbrio provocado pelas doações na escolha do eleitor. O que se viu, no entanto, foi a escalada da destinação de dinheiro público para os políticos.
Atrelados à lei orçamentária, matéria em grande parte dominada pelo Congresso, os dois fundos possuem regras que firmam seu piso, mas não limitam seu teto. Na prática, ao transferir o ônus de custear as campanhas quase exclusivamente à União, a decisão do STF acabou por colocar a raposa para guardar o galinheiro, dando autonomia quase irrestrita sobre os valores a partidos cuja única ideologia é permanecer no poder. Na visão de especialistas, o sistema de financiamento que vigora hoje é caro, ineficiente e aprofunda as desigualdades partidárias — o país tem 29 siglas registradas, mas dez delas concentram 84% da verba. “É um modelo antidemocrático e predatório, que incentiva os partidos que mais recebem recursos a pensar de forma pragmática, não necessariamente ideológica”, avalia Ana Claudia Santano, coordenadora-geral da Transparência Eleitoral Brasil e professora de direito eleitoral. “O Centrão já aprendeu a estratégia, que é formar a maior bancada possível de deputados e deixar o Executivo em segundo plano.” Apesar de concentrar verba nas maiores legendas, o mecanismo também não desagrada aos muito inexpressivos. Em 2024, nove partidos receberão cada um 3,4 milhões de reais. Alguns, como o novato Unidade Popular e o já conhecido PCO, nunca elegeram ninguém.
O impulso dado ao PL por Bolsonaro trouxe também a necessidade de gerir uma relação complexa. Além da questão da inelegibilidade, a convivência com o ex-presidente, a família dele e seus aliados mais fiéis nunca foi tranquila. Considerado uma pessoa de “trato difícil”, o capitão atrai tanto admiradores quanto confusões. A complicada convivência com ele faz com que até aliados como Valdemar sejam alvo de fogo amigo. O cacique diz que já foi tido com “restrições” pelos bolsonaristas raiz, que, ironia das ironias, viam nele uma figura “inclinada ao PT”. É dessa forma que o bilionário partido se equilibra para as próximas disputas. Uma mão estendida a Bolsonaro, um olho nos radicais e outro no futuro — o PL, que completa quarenta anos em 2025, só pensa em multiplicar o caixa para manter o atual protagonismo.
“O Bolsonaro é imprevisível”
Presidente do PL, Valdemar Costa Neto afirma que não sabe quem será o presidenciável da sigla em 2026 se Bolsonaro não puder disputar, diz que o ex-presidente vai escolher quem irá apoiar e ressalta: “Ele não é um camarada normal como a gente”.
O PL terá pouco mais de 1 bilhão de reais em 2024. Como vai usar isso? É uma loucura, porque é muito dinheiro para o país, mas não para o partido. O Brasil é um continente. Deveremos ter perto de 2 000 candidatos a prefeito e 40 000 a vereador. Se pegar o dinheiro e dividir com todo mundo, não dá.
Qual seria a alternativa? Devíamos ser financiados pelas empresas, com um teto, como nos EUA. Hoje, o camarada pode doar até 10% do que fatura como pessoa física. É uma mixaria. Tem que liberar doação empresarial. E tirar o dinheiro público disso.
Qual será o papel de Bolsonaro na campanha? Ele e a Michelle vão gravar com os candidatos mais importantes. E ele já está ajudando muito; em todo lugar que vai, é uma multidão nas ruas. Claro que vamos ter que discutir isso, porque ele tem as preferências dele. Estamos esperando uma guerra interna, porque o candidato vai pedir para Bolsonaro passar na cidade, e ele não vai. Ele só anda em avião de carreira. “Ah, mas na minha cidade tem voo de carreira.” Sim, mas ele vai perder um dia para ir à sua cidade?
Como está a comunicação com Bolsonaro, já que o ministro Alexandre de Moraes proibiu contato entre vocês? Atrapalha a vida. Queremos ver até quando vai isso. Vamos ver se conseguimos entrar com outro recurso.
Como faz quando precisa tratar algo com ele? Às vezes tem um negócio em tal lugar, eu mando um deputado que vai lá falar com ele. Não tem uma pessoa específica. Mas isso é ruim para mim, pois tem coisas que a gente não consegue resolver. Porque o Bolsonaro é difícil.
O senhor foi preso no inquérito que apura o golpe de Estado. Como está lidando com isso? Eu tinha um problema sério com a extrema direita do partido, o pessoal mais novo, que acha que tudo que é da esquerda é errado. No PL, são uns 30%, 40%. Eles tinham restrição a mim, porque tivemos um vice-presidente no governo do PT. Com essa prisão, Moraes me zerou com a turma da direita, que pensou: “Agora eu vi que o Valdemar é um dos nossos”. O que esse pessoal viu? Que o Moraes me prendeu porque estou com o Bolsonaro. Foi bom para mim.
Em 2026, o PL terá candidato ao Palácio do Planalto, mesmo que não seja o ex-presidente, que hoje está inelegível? Sim, o Bolsonaro é quem vai escolher. Ele escolhe o presidente e o vice. É ele que tem os votos. Então, se você me perguntar quem vai ser o próximo candidato a presidente, eu não sei. Não sei se o Bolsonaro vai inventar outro Tarcísio de Freitas. É imprevisível, porque o Bolsonaro não é um camarada normal como a gente. Não é.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900