O longo caminho do centro para definir alternativa a Lula e Bolsonaro
O lançamento de um manifesto em defesa da democracia foi um passo ainda inicial para um entendimento entre os presidenciáveis
Encontrar um espaço no centro político brasileiro em meio à era da polarização já era um desafio colossal. Com a volta à cena do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a missão ficou ainda mais complicada. O petista retornou ao palanque rivalizando com Jair Bolsonaro, numa disputa da qual ambos se retroalimentam, deixando o ar ainda mais rarefeito para a construção de uma terceira via. No início da semana, uma pesquisa da XP/Ipespe trouxe uma boa e uma má notícia para os candidatos que tentam ocupar esse espaço. O dado promissor é que a soma das intenções de voto nos nomes de fora dos extremos de esquerda e direita é de 29%, a mesma fatia do eleitorado que aponta o petista (29%) ou o atual presidente (28%). Na teoria, portanto, há uma avenida enorme a ser explorada para além das propostas mais radicais, e uma grande parte da população, cansada desse tipo de discurso, parece mesmo disposta a buscar uma alternativa para não repetir 2018. O dado ruim no cenário atual é que não há um nome que, sozinho, tenha popularidade e capacidade de aglutinação suficientes para enfrentar o petismo e o bolsonarismo. Com isso, somente uma costura de dificílima execução teria força para unir os concorrentes dessa faixa e colocar de pé uma alternativa robusta.
Situação da Política Brasileira
É difícil apontar a capacidade de formar consensos, de liderar convergências, como uma qualidade inata dos políticos brasileiros. Até os presidentes mais habilidosos preferiram recorrer a expedientes pouco republicanos, como a distribuição de verbas, favores e cargos para atrair aliados e construir alianças para chegar ao poder ou para governar. Tampouco há composições fáceis entre líderes do mesmo espectro ideológico — por anos, o petista Lula e o trabalhista Leonel Brizola, para ficar em um exemplo, se engalfinharam na busca pela hegemonia da esquerda. Diante de tal histórico, não deixa de ser alvissareiro que seis pré-candidatos à Presidência em 2022 tenham assinado um documento conjunto em defesa da democracia: os governadores João Doria (PSDB-SP) e Eduardo Leite (PSDB-RS), os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta (DEM) e Ciro Gomes (PDT), o empresário João Amoêdo (Novo) e o apresentador Luciano Huck. Também esteve envolvido com o manifesto o ex-juiz Sergio Moro — especulado como candidato, a sua condição hoje é mais de observador. A carta não elimina os obstáculos enormes que ainda precisam ser vencidos, mas é significativa porque mostra disposição para o diálogo dentro desse espectro político, coloca na mesa quem tem ambições nacionais em 2022 e delimita os adversários: o bolsonarismo e o petismo. Restam dúvidas, no entanto, sobre como personalidades políticas de pensamentos, temperamentos e expectativas de protagonismo tão diferentes permanecerão unidas a ponto de apresentar ao eleitor uma candidatura única e viável.
Lula, aliás, teve um papel decisivo para a formação desse grupo — não por mérito, mas pela ameaça que representa. A reabilitação dos seus direitos políticos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) já havia despertado um senso de urgência entre essas lideranças sobre a necessidade de negociar uma unidade mínima e impedir a pulverização dos votos do eleitorado de centro. Ciro Gomes sintetizou a ideia no dia 10 de março, em uma live com o movimento cívico Derrubando Muros, do qual fazem parte o ex-deputado Roberto Freire, presidente do Cidadania, e o presidente da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), Marcello Brito. Na conversa, o pedetista afirmou que os líderes de centro precisam deixar claro que são pré-candidatos porque só assim conseguirão aglutinar uma parcela do eleitorado em torno dos projetos. “Quando chegar a hora de discutirmos se vamos nos juntar, não poderemos ser um grande conjunto de vazios”, disse. Alinhado com esse pensamento, o ex-ministro Mandetta intensificou articulações políticas e, no dia 30 de março, pensou em elaborar um projeto de lei encabeçado pelos presidenciáveis para a criação de um dia para valorizar a democracia brasileira. A ação seria uma resposta à decisão de Bolsonaro de interferir no comando das Forças Armadas. O ex-ministro disparou a ideia para interlocutores de Huck e para Doria. Ambos rechaçaram a iniciativa de criar uma lei, mas apoiaram a divulgação de um manifesto em favor da democracia. Com o texto finalizado, só faltava então obter a assinatura de Ciro, o político mais distante do grupo. Achando que seria rejeitado, Mandetta buscou o número de celular do pedetista com o ex-deputado José Luiz Penna (PV). Para sua surpresa, Ciro aprovou o texto de bate-pronto e topou subscrevê-lo. De última hora, houve uma defecção no grupo: Moro retirou o seu nome em razão de uma cláusula contratual com a consultoria Alvarez & Marsal, empresa para a qual trabalha e que proíbe manifestações políticas. O documento foi publicado no início da noite de quarta 31, dia em que Bolsonaro orientou o Ministério da Defesa a comemorar o golpe de Estado que iniciou a ditadura.
Ex ministro da Saúde, Mandetta
Concluída a primeira demonstração pública de união, Mandetta convenceu os colegas (incluindo Moro) a criar um grupo permanente de WhatsApp intitulado Polo Democrático. As trocas de mensagens continuam, mas não se falou de nenhum outro projeto em comum depois do manifesto. Após a divulgação da carta, cada liderança se dirigiu às suas bases e aos seus conselheiros para avaliar a repercussão e estruturar os próximos passos dessa corrida. Se até o primeiro trimestre de 2022 não for possível criar um entendimento que os faça caminhar dentro de uma candidatura única, acredita-se que ao menos um pacto de não agressão será firmado para o primeiro turno. “O grupo é um avanço democrático, que demonstra pela primeira vez a capacidade de entendimento em torno de um projeto pelo país”, diz Doria. “Não significa que isso resultará numa candidatura única ou coligação, mas um espaço foi aberto para nos permitir avançar na coordenação de uma candidatura de centro comum”, acrescenta Eduardo Leite. Com o grupo de WhatsApp, espera-se também que Mandetta deixe de atuar como o único agente capaz de unir os outros seis presidenciáveis. É notório que Doria tem mais afinidade com Moro, enquanto Leite e Huck mantêm contatos mais estreitos. Uma ausência sentida no manifesto foi a do governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), que tem bom trânsito com todos, exceto Moro. Um interlocutor de Huck afirmou que as conversas com Dino estavam fluindo bem e que ele continua sendo um amigo, mas que a volta de Lula ao jogo mexerá com o PCdoB e com os planos que o gestor maranhense tem para 2022.
Enquanto o grupo de centro segue determinado na missão de apresentar suas credenciais ao país, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prega a cartilha do pragmatismo eleitoral absoluto como única forma de vencer os extremos em 2022. Segundo ele, será necessário despir-se de individualismos de modo que o mais bem colocado nas pesquisas seja candidato, com o apoio dos demais. Na avaliação do tucano, Moro não é um bom produto eleitoral e Huck deve entrar no páreo quanto antes. Caso contrário, também não conseguirá liderar esse processo. “Huck tem muito pouco tempo para se transformar em líder político. Ter popularidade é uma coisa, ser líder político, outra.” FHC pontua o que os próprios presidenciáveis já sabem, mas não dizem ainda: “O maior inimigo desse movimento é ele próprio”. O ex-presidente se refere às visíveis diferenças ideológicas e de estilo entre os participantes.
Um nome, especialmente, sintetiza esse entrave: Ciro Gomes. Além de sentir-se mais confortável à esquerda do que os demais, ele já tem um capital eleitoral conhecido e, por isso, é praticamente impossível abrir mão da disputa para apoiar quem quer que seja. Ciro terminou em terceiro lugar em 2018, com 12,4% dos votos. “A possibilidade de Ciro não ser candidato não existe. Queremos convencer que ele é o que tem mais viabilidade”, entrega Carlos Lupi, presidente do PDT. E, ainda assim, o pedetista não está disposto a abraçar qualquer companhia. Moro, por exemplo, nem pensar. “Se o ex-juiz tivesse assinado o manifesto, o Ciro estaria fora”, garante Lupi. Ele também teria resistências quase intransponíveis para caminhar ao lado de Doria e Amoêdo — e vice-versa. Um dos mais equilibrados do grupo, o presidenciável do Novo defende a ideia de que o próximo passo seja a elaboração de propostas de governo, justamente para depurar quem está disposto a seguir na aliança pelo centro até o final. “Ao fim, pode ser que fiquem mesmo uma ou duas candidaturas”, diz.
Único a não assinar o manifesto, Moro é uma das possíveis cartas fora do baralho (ao lado de Huck, este em razão de suas ambições profissionais). O ex-juiz avisou a aliados que pretende bater o martelo sobre sua candidatura até outubro deste ano. Sabe-se, porém, que ele está muito feliz com a remuneração do atual emprego e sonha em passar uma temporada com a família na sede da companhia, nos EUA. O apresentador global também quer postergar ao máximo a decisão de entrar ou não na disputa. Ele avalia a possibilidade de substituir o apresentador Fausto Silva como grande atração do domingo da Globo, um antigo sonho seu. Se há hesitação de um lado, outros são bastante determinados. Assim como ocorre com Ciro, ninguém vê Doria disposto a abrir mão do projeto de ser o candidato. Não por coincidência, o tucano é um dos maiores defensores de que o cabeça de chapa seja definido o mais rápido possível. Para ele, numa análise evidentemente acertada, o postulante de centro sai atrás na corrida, uma vez que Bolsonaro faz campanha desde o primeiro dia como presidente e Lula tem um piso eleitoral alto.
Enquanto estiver pendente a definição sobre quem disputará a eleição, os postulantes continuarão buscando conselheiros para construir programas para apresentar ao eleitor. Assim como fez em 2018, Ciro defenderá uma agenda nacional-desenvolvimentista formulada em parceria com o deputado Mauro Benevides Filho (PDT-CE) e o economista Nelson Marconi — o que naturalmente já o afasta dos outros postulantes. O restante do grupo manifesta preferência pelo liberalismo. Huck tem relação próxima com o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, enquanto Amoêdo se aconselha com Gustavo Franco, um dos idealizadores do Plano Real. Já Eduardo Leite é amigo fiel de Aod Cunha de Moraes Júnior, ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul. Especula-se que outros economistas poderão surgir na órbita do sexteto, como Pérsio Arida, Marcos Lisboa e André Lara Resende.
Presidente Jair Bolsonaro
Ainda que timidamente, o movimento dos centristas repercutiu nos extremos. O manifesto foi assunto na última reunião do Diretório Nacional do PT. A cúpula do partido avaliou que se trata de algo muito incipiente, portanto, sem potencial de dano claro às pretensões da sigla de retorno ao poder. O discurso para desgastá-lo, porém, já está na ponta da língua. Petistas começaram a dizer que é a união entre cinco eleitores de Bolsonaro de 2018 e um outro que fugiu para Paris na ocasião, em referência a Ciro, que saiu do Brasil e não compareceu ao segundo turno. Já Bolsonaro evitou passar recibo. Coincidência ou não, entretanto, o presidente se reuniu com um grande grupo de empresários na quarta 7 em São Paulo, um público que majoritariamente tende a caminhar pelo centro. Em uma entrevista recente, Lula também fez acenos nessa mesma direção.
Para os homens de negócios do país, o melhor candidato será aquele que se aproximar do perfil do presidente americano Joe Biden, que derrotou o radicalismo de Donald Trump ao reunir uma vasta experiência na vida política e o mantra de pacificador da nação. “O sonho de consumo é ter alguém que pacifique o país”, resume José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast) e vice da Fiesp. Coelho passou as últimas semanas reunido com dirigentes de diferentes setores tendo como uma das principais pautas o cenário de 2022. Na visão de uma parcela significativa do PIB, é preciso se afastar dos aventureiros e ter alguém que propicie dois ativos em falta ao país: estabilidade e previsibilidade. Em outras palavras, paz e trabalho. É o mesmo sonho da maior parte do eleitorado brasileiro.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733