Um encontro improvisado às pressas próximo ao estacionamento da Catedral Rainha da Paz, um dos cartões postais de Brasília localizado nas cercanias do Quartel-General do Exército, mudou o desfecho do fatídico dia 8 de janeiro. Por volta das 20h, os vândalos que invadiram e depredaram o Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional e o Palácio do Planalto subiam o eixo monumental rumo ao acampamento erguido em 31 de outubro do ano passado, em protesto à derrota de Jair Bolsonaro nas eleições. Muitos não eram moradores da capital federal e haviam se alojado nas barracas nas proximidades do QG, mantidas há meses sob a conivência dos militares e do governo local, que ignoraram os alertas golpistas que os próprios acampados entoavam.
Enquanto os manifestantes deixavam para trás rastros de depredação e desprezo à democracia, Lula determinou aos ministros José Múcio, da Defesa, e Flávio Dino, da Justiça, que o acampamento fosse imediatamente desmobilizado — e os envolvidos nos ataques, devidamente presos. “É para tirar e prender todo mundo”, mandou. Primeiro, se cogitou sair prendendo indiscriminadamente todas as pessoas que estivessem na Esplanada, solução que foi rechaçada por ser de difícil execução, além de poder ser considerada um abuso de autoridade.
Como alternativa, o então designado interventor Ricardo Cappelli determinou que a Polícia Militar, finalmente reforçada, marcharia até o acampamento – e lá a emboscada seria armada. Dentro do governo, havia a certeza de que estava um curso uma tentativa de golpe, e a ordem era para que aquele dia fosse encerrado com uma cena de vitória do governo sobre a intentona, consagrada com todos os criminosos presos. Estava tudo certo para a operação, mas um recuo do presidente Lula mudou o enredo daquela noite.
Ao chegar às imediações do acampamento, a polícia se deparou com o local completamente fechado pelos militares. Por determinação do então comandante do Exército, general Júlio César de Arruda, ninguém entraria naquela área, que fica sob a jurisdição militar. Ninguém mesmo. Viaturas, barreiras e militares posicionados lado a lado impediam o acesso à área. Coube ao então chefe do Comando Militar do Planalto (CMP), general Gustavo Dutra, tentar demover o avanço da PM.
No encontro improvisado próximo à Igreja Rainha da Paz, o general disse a Cappelli que a operação, àquela hora da noite, em um ambiente escuro e com mais de 1000 pessoas, embutia um alto risco. “A praça não tem luz suficiente. Mas tem paus, pedras, mulher, criança, idoso. A polícia está nervosa, as pessoas estão nervosas. Vai ter morte”, alertou. O interventor, então, questionou se haveria pessoas armadas lá dentro. Diante da negativa, ignorou o alerta: “Eu vou entrar”.
Enquanto os dois conversavam, o isolamento da área militar era reforçado, novamente por ordem de Arruda, e até os famosos guaranis, blindados usados para combate, foram posicionados na entrada da região. Em meio ao impasse, cada um se afastou e escalou o problema. Cappelli ligou para Flávio Dino, que manteve a ordem para o avanço das tropas. O general Gustavo Dutra, ignorando a cadeia de comando militar, decidiu ele próprio ligar para o general Marco Gonçalves Dias, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) demitido na última semana.
GDias, como é conhecido, prontamente atendeu. Ao telefone, o general Dutra explicou a situação, ressaltou novamente o perigo da ação noturna e pediu que as considerações fossem encaminhadas ao presidente Lula. Não se passaram nem cinco minutos, e o chefe do GSI retornou a ligação. A resposta não era a esperada: Lula mantinha a posição de prender todo mundo naquele mesmo instante. “Vai dar m…! Explica para ele, general”, rebatia Dutra. Foi aí que o próprio Lula assumiu a ligação.
Do outro lado da linha, o presidente repetia a mesma frase o tempo inteiro: “São criminosos, general! Tem que ser todo mundo preso”. Dutra tentava contra-argumentar, mas era a todo momento interrompido. “São criminosos! Prenda!”, dizia Lula.
Dutra tentava contra-argumentar, mas era a todo momento interrompido. Na terceira vez, o militar fez uma ponderação. “Presidente, estamos todos indignados, hoje é um dia triste para o Brasil. Mas, até o momento, nós só estamos lamentando danos ao patrimônio. Se nós entrarmos agora, sem coordenação, vai morrer gente. O senhor quer isso?”. Lula, então, mudou o tom. “Seria uma tragédia”, ele disse. “É isso que eu estou falando para o senhor”. Lula respirou fundo e falou: “General, cerca todo mundo, não deixa ninguém sair da praça e prende todo mundo amanhã”.
O general agradeceu a compreensão e desejou, na medida do possível, uma boa noite ao presidente da República. No dia seguinte, em operação iniciada às 6h30, os mais de 1.000 manifestantes foram retirados e presos.