Número recorde de candidatos trans esquenta a briga contra a intolerância
No total, são 58 nomes na disputa por cargos de deputado estadual e federal, senador e governador — de acordo com a ONG VoteLGBT
Retrato cruel de uma realidade que persiste no país, a história de Erika Hilton passa por uma expulsão de casa aos 14 anos pelo fato de se identificar com o gênero oposto ao seu sexo biológico, pela vida desamparada na rua e por sete anos de prostituição. Decidida a transformar seu drama em bandeira contra a intolerância, a travesti paulista de 29 anos candidatou-se pelo PSOL, tornou-se a vereadora mais votada do Brasil em 2020 e agora tenta uma inédita vaga na Câmara dos Deputados. O nome de Erika integra a lista recorde de candidaturas de pessoas trans nestas eleições: 58 candidatos a deputado estadual e federal, senador e governador — de acordo com a ONG VoteLGBT. Quando se contabilizam todos os aspirantes a cargos eletivos que declaram fazer parte do universo LGBTQIA+, o crescimento é ainda mais expressivo: 61%, ou 254 candidatos a deputados estaduais e federais. “O ódio e a discriminação que sofremos nos intimam a disputar espaço no poder. Não há como pensar em democracia sem a nossa participação”, defende Erika.
A vereadora é uma das protagonistas do documentário Corpolítica, com lançamento previsto neste mês no Festival Queer Lisboa. A obra retrata a trajetória de seis representantes desse universo na disputa por cargos eletivos. “Queríamos entender o que está por trás desse despertar político e as suas dificuldades”, explica o diretor, Pedro França. O assunto ganha ainda maior dimensão pela contradição que embute: o recorde de candidatos LGBTQIA+ resulta, de um lado, da pressão global por uma sociedade mais aberta à diversidade e, de outro, de seu exato oposto, a onda de conservadorismo que se alastra pelo planeta. “O salto dessas candidaturas tem muito a ver com um movimento de resistência ao efeito Bolsonaro, à retórica misógina, homofóbica e transfóbica do governo”, ressalta Gustavo Costa Santos, professor de sociologia da UFPE.
Faz sentido que a população LGBTQIA+ daqui se empenhe por maior representatividade diante dos riscos que corre. O Brasil encabeça há treze anos o inaceitável pódio do país que mais mata trans e travestis, totalizando 1 733 assassinatos durante esse período. “Tive de ir embora sem terminar meu mandato por causa de ameaças de morte e hoje, por segurança, concentro a campanha na internet”, relata a trans Benny Briolly (PSOL), eleita vereadora em Niterói em 2020 e que agora disputa uma vaga de deputada estadual. Com todo o avanço, a participação dessa população no poder ainda é mínima: ocupa só 0,16% dos cargos nas esferas municipal, estadual e federal. “Como quase todas as mulheres como eu, fui vítima inúmeras vezes de preconceito e discriminação. É inaceitável que não tenhamos uma representante no Congresso”, ressalta a maquiadora e modelo Ariadna Arantes, 38 anos, que ficou famosa ao participar de um reality show, foi convidada a ingressar no PSB por Geraldo Alckmin e é candidata a deputada federal por São Paulo.
O caminho para a população LGBTQIA+ conquistar espaço na política começou a ser pavimentado, timidamente, há trinta anos, com a vitória nas urnas da piauiense Kátia Tapety, a primeira vereadora travesti do país. Quase duas décadas depois, o deputado Jean Wyllys seria o primeiro gay assumido a ocupar uma cadeira na Câmara. “A expectativa é que neste ano, até em reação a tanta gente homofóbica no poder, a nossa representatividade aumente”, avalia Wyllys, que renunciou ao terceiro mandato devido a ameaças de morte.
Na América do Sul, pelo menos três países — Chile, Equador e Venezuela — têm transexuais no Parlamento. Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden nomeou a médica trans Rachel Levine para o segundo posto mais importante no Departamento de Saúde. “Nossa ascensão a cargos públicos não é uma questão de cota, mas de abrir espaço para pessoas qualificadas e que experimentam a realidade das minorias na pele”, defende a assistente social e ativista trans Paula Benett (PSB), 42 anos, candidata pelo Distrito Federal a uma vaga na Câmara que foi chamada nas redes sociais de “mulher de próstata”. Fartos de ouvir insultos, os candidatos LGBTQIA+ agora querem ter voz.
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806