O PT mal havia completado cinco anos de existência quando, em novembro de 1985, a professora universitária Maria Luíza Fontenele protagonizou um momento histórico no Brasil — nas eleições municipais daquele ano, as primeiras diretas no país desde o fim da ditadura, ela venceu nas urnas em Fortaleza e tornou-se a primeira mulher a assumir o comando de uma capital. Passadas quatro décadas, no entanto, a representatividade feminina na política nacional ainda enfrenta muitos obstáculos, tanto que, em 2020, apenas uma mulher, Cinthia Ribeiro (PSDB), foi eleita prefeita de uma capital, Palmas. Na disputa eleitoral deste ano, somente 15% dos postulantes a administrar uma cidade são mulheres, mas há uma capital que contraria de forma estrondosa a regra: Aracaju, onde nada menos que cinco candidatas a prefeita pontuam nas pesquisas, três delas nas primeiras posições da corrida.
O perfil das concorrentes varia da esquerda à direita, mas há algumas coincidências. Quatro delas são do ramo do direito: a defensora pública Emília Corrêa (PL), que lidera isoladamente, a delegada Danielle Garcia (MDB) e as advogadas Yandra Mourão (União Brasil) e Niully Campos (PSOL). A quinta é a jornalista Candisse Carvalho (PT). O principal desafiante a uma vitória feminina é Luiz Roberto (PDT), também advogado, apoiado pelo prefeito Edvaldo Nogueira (PDT), que governa a capital de Sergipe há dois mandatos, mas tem aprovação baixa: apenas 30% avaliam bem sua gestão, o que deixa o seu representante atrás de três mulheres.
As pautas das candidatas têm coisas em comum. Uma delas é endurecer o combate à violência contra a mulher, ampliar sistemas de acolhimento integral às vítimas de agressão e introduzir políticas de saúde direcionadas ao público feminino, com atenção especializada às gestantes e puérperas. Os planos de Emília e Yandra incluem cuidados com mães de crianças atípicas, enquanto Danielle promete creches comunitárias financiadas pelo município. Já as agendas de Candisse e Niully têm questões de direitos reprodutivos e de combate à violência obstétrica — a candidata do PSOL prega ainda garantir o amplo acesso ao aborto na rede pública a vítimas de estupro.
Os desafios das candidatas na disputa não são poucos. As concorrentes relatam agressões nas redes sociais, lamentam a cultura do machismo e criticam a pressão dentro dos próprios partidos para relegar as candidaturas a cargos coadjuvantes e destinar mais recursos aos homens. “Recusei oferta para concorrer como vice por outra legenda, firmando uma aliança, por insatisfação com esse papel sempre delegado às mulheres de compor chapas e cumprir cotas”, diz Danielle Garcia. A corrida dominada por mulheres anima as postulantes à prefeitura. “Nós representamos a possibilidade de colocar em prática transformações necessárias para o nosso município”, afirma Yandra Moura.
Para analistas, o quadro é resultado de uma combinação de fatores locais, regionais e pessoais. Em 2023, o governo, comandado por Fábio Mitidieri (PSD), foi pioneiro ao criar uma secretaria especializada de políticas para mulheres — a pasta foi assumida pela hoje candidata Danielle Garcia. No mesmo ano, os nordestinos elegeram as duas únicas mulheres governadoras: Raquel Lyra (PSDB), em Pernambuco, e Fátima Bezerra (PT), no Rio Grande do Norte. “O Nordeste tem sido um terreno fértil para candidaturas femininas, e as concorrentes em Aracaju têm demonstrado carisma, discurso atrativo e talento para transitar entre espaços de direita e esquerda”, avalia Yuri Sanches, diretor de análise política na AtlasIntel.
Ainda há muito a avançar na representação feminina no país. No ranking da Inter-Parliamentary Union (IPU), o Brasil está na 133ª posição, com 17,5% de mulheres na Câmara. Para se ter uma ideia do vexame, o país fica atrás de nações como Arábia Saudita, Turquia e Azerbaijão. Solução paliativa, as cotas de gênero existem desde a década de 1990, mas o seu cumprimento era pouco fiscalizado e só recentemente passou a receber a devida atenção dos partidos. Em muitos casos, por más intenções, com a ocorrência de fraudes e o lançamento de candidaturas “laranjas”. “As cassações e a vinculação do fundo eleitoral às cotas incentivam o cumprimento da lei, mas é preciso pressão pública sobre as legendas para incentivar a formação de lideranças femininas”, avalia Ana Claudia Santano, diretora-executiva da Transparência Eleitoral Brasil. Considerando-se esse contexto, Aracaju ainda representa uma exceção, infelizmente.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909