Múltiplas investigações colocam sob ameaça direitos políticos de Bolsonaro
A situação do ex-presidente ficou ainda mais difícil depois dos atos golpistas de janeiro e da trama narrada pelo senador Marcos do Val, revelada por VEJA
Apesar de prometer na campanha pacificar o país e não fazer do revanchismo uma marca de sua gestão, o presidente Lula está deixando claro que tem contas a acertar com adversários — antigos e novos, reais ou convenientemente fabricados. Uma de suas prioridades é garantir a punição a militares que contribuíram direta ou indiretamente para o ataque de radicais bolsonaristas ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Outra, anunciada de forma surpreendente nos últimos dias, é atacar o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, numa tentativa de transformá-lo em bode expiatório e responsabilizá-lo injustamente pelas dificuldades econômicas do país, algumas das quais agravadas por declarações do próprio presidente. A maior obsessão de Lula, no entanto, tem nome e sobrenome conhecidos. O petista quer que Jair Bolsonaro passe pelas mesmas agruras que ele enfrentou: inelegibilidade e prisão. Em retiro voluntário nos Estados Unidos, o capitão já disse mais de uma vez que teme ser preso, mas a principal ameaça a ele, por enquanto, é a cassação de seus direitos políticos.
A guerra entre o atual e o antigo mandatário está apenas começando. A estratégia de Lula é convencer a Justiça de que Bolsonaro foi o mentor de uma tentativa permanente de golpe, estimulada por uma poderosa máquina de disseminação de fake news, ensaiada no feriado de 7 de setembro de 2021 e consumada com a invasão e depredação da sede dos Três Poderes, em Brasília, no último dia 8 de janeiro. Ciente dos riscos que corre, Bolsonaro alega que nunca saiu das “quatro linhas da Constituição”, que não flertou com uma intervenção militar e que não há provas de seu envolvimento em ações golpistas. Parte dessa argumentação está em xeque desde que VEJA revelou que o ex-presidente se reuniu com o ex-deputado Daniel Silveira (sem partido) e o senador Marcos do Val (Podemos-ES), em dezembro passado, para debater um plano destinado a anular o resultado das eleições, impedir a posse de Lula e garantir a permanência de Bolsonaro no poder. A ideia era que o senador, convidado para o encontro no Palácio da Alvorada, gravasse o ministro do STF Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e conseguisse uma declaração dele que pudesse ser usada para questionar a sua imparcialidade na condução do processo eleitoral e até mesmo pedir a sua prisão.
A VEJA, o senador declarou que Bolsonaro e Daniel Silveira disseram, ao encomendar a missão, que ele podia “salvar” o Brasil. Diante da repercussão do caso, Marcos do Val foi procurado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o filho mais velho do ex-presidente, e em seguida passou a dar entrevistas nas quais afirmou que o capitão apenas ouviu o plano, que teria sido detalhado por Silveira. Uma mensagem inédita mostra que esta segunda versão do senador não se sustenta. Em 12 de dezembro, três dias após a reunião no Palácio da Alvorada, Marcos do Val escreveu a Alexandre de Moraes para dizer que precisava falar com o ministro sobre o encontro com o “PR” e o “DS”. E emendou, de forma cristalina, usando o plural: “Me pediram uma ação esdrúxula, imoral e até criminal. Não sei como poderia te contextualizar com segurança” (veja a mensagem). Tachada de “operação tabajara” por Alexandre de Moraes, a conspiração urdida no Palácio da Alvorada deve encorpar uma das dezesseis ações que, por razões diversas, pedem a cassação dos direitos políticos de Bolsonaro por oito anos. Ações desse tipo contra presidentes da República costumam dar em nada, mas, no caso do capitão, há disposição de integrantes do Poder Judiciário de levar os processos adiante e, mais importante, punir o ex-presidente.
Um indicativo disso é a decisão do corregedor da Justiça Eleitoral, ministro Benedito Gonçalves, de simplificar a coleta de provas. Ele determinou que não será mais necessário ao TSE se manifestar antecipadamente sobre a validade de cada documento novo incluído nas investigações que miram a inelegibilidade de Bolsonaro. Isso permite, por exemplo, que o plano detalhado por Marcos do Val possa ser incorporado aos processos sem uma análise prévia de admissibilidade. Tudo em nome da celeridade. “A infeliz constatação é que, embora seja de rigor afirmar que a diplomação encerra o processo eleitoral, um clima de articulação golpista ainda ronda as eleições de 2022. Assistimos a atos de terrorismo que atingiram seu ápice nos ataques à sede dos Três Poderes da República em 08/01/2023”, diz Benedito Gonçalves em despacho assinado na terça-feira 7. “Somam-se o plano para espionar e gravar sem autorização conversa do presidente do TSE, a ocultação de relatórios públicos que atestavam a lisura das eleições e o patrocínio partidário de ‘auditoria paralela’ e de outras aventuras processuais levianas, tudo para manter uma base social em permanente estado de antagonismo com a Justiça Eleitoral, sem qualquer razão plausível”, acrescenta o corregedor.
Até o ano passado, a hipótese de Bolsonaro ficar inelegível era considerada improvável, mas ela passou a ser cogitada no Supremo e no TSE depois de apoiadores do ex-presidente protagonizarem atos de vandalismo no dia da diplomação de Lula, em 12 de dezembro, e ganhou tração após a quebradeira na Praça dos Três Poderes, no início de janeiro. Ministros e ex-ministros do TSE consideram emblemático o caso de Bolsonaro e alegam que, se o tribunal não punir o ex-presidente, endossará a ação dos radicais que atentaram contra a democracia e recorreram ao vandalismo para contestar a legitimidade das eleições. O ponto-chave na discussão jurídica é colocar o capitão na cena do crime, como mentor — ou mandante — de ações golpistas, exatamente o que Lula mais deseja. O TSE parece empenhado em passar a história a limpo. Há quem fale em decisão sobre o futuro político de Bolsonaro ainda neste ano. O tribunal entrou na fase final de instrução da primeira das ações de inelegibilidade, na qual o ex-presidente é acusado de abuso de poder por ter convocado embaixadores em julho passado para expor supostas fragilidades do sistema eleitoral brasileiro.
Já foi incluída no processo a minuta golpista encontrada na casa de Anderson Torres. A trama narrada por Marcos do Val deve ter o mesmo destino. Na quarta-feira 8, o TSE ouviu as duas únicas testemunhas de defesa do caso. Entre elas, o ex-ministro da Casa Civil Ciro Nogueira. “Bolsonaro estava tentando se aproveitar do poder político para ganhar as eleições e manchar as instituições democráticas com a decretação de um Estado de Defesa. O TSE já pode proferir essa sentença ainda em março, se quiser”, disse a VEJA o advogado Walber Agra, que assina em nome do PDT a ação que pede a inelegibilidade do ex-presidente. Partido de Bolsonaro, o PL contratou cinco advogados para lidar com as acusações contra o seu filiado mais ilustre. Mandachuva da sigla, Valdemar Costa Neto considera a batalha judicial justamente o primeiro desafio a ser enfrentado pelo capitão ao voltar dos Estados Unidos. Hábil negociador nos bastidores, Valdemar está tentando um armistício com Alexandre de Moraes, desafeto público número 1 de Bolsonaro. A corte ao ministro faz todo o sentido.
Acusado por Bolsonaro de tentar inviabilizar o seu governo e de trabalhar pela eleição de Lula, Moraes também é responsável por inquéritos no Supremo que tratam do ataque às instituições à cadeia de comando dos atos golpistas de 8 de janeiro, ou seja: ele tem poder de sobra para, pelo menos, constranger o ex-presidente. “Farão de tudo para prender Bolsonaro e seus filhos. A família tem medo, sim, da prisão”, diz um dos aliados mais próximos do ex-presidente. Na última quarta-feira, quando completou um mês da invasão e depredação da sede dos Três Poderes, Lula publicou um vídeo para condenar ações terroristas e deixar clara sua disposição com relação aos radicais: “Todas essas pessoas que fizeram isso serão encontradas e serão punidas”. O presidente quer punição ampla, geral, irrestrita — para todos, mas principalmente para Bolsonaro. Na cabeça do presidente, a desforra tem de ser na mesma moeda: cassação dos direitos políticos e cadeia.
Publicado em VEJA de 15 de fevereiro de 2023, edição nº 2828