Conhecido pelo estilo durão e por não fugir das grandes batalhas, Alexandre de Moraes vem mostrando uma enorme resistência diante de muitas críticas feitas a ele. Nos últimos tempos, o ministro passou a ser frequentemente acusado de acúmulo indevido de poderes e de extrapolar o papel de juiz para atuar nos mesmos processos como investigador e acusador. Até aqui, manteve-se incólume aos ataques. A maioria dos colegas do Supremo Tribunal Federal, aliás, reconhece o papel essencial dele na defesa da Corte — e da democracia. Essa capacidade de resiliência passa agora por um novo teste, com a divulgação de diálogos que tentam levantar a grave suspeita de que o ministro fez uso político do Tribunal Superior Eleitoral, tendo como alvo principal os bolsonaristas.
Em reportagem publicada pela Folha de S.Paulo na terça-feira, 13, foram reveladas conversas entre um juiz auxiliar de Moraes, Airton Vieira, e Eduardo Tagliaferro, um perito membro da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), do TSE. Com base nesses diálogos, a reportagem sustenta que o gabinete de Moraes no STF pedia de maneira informal — fora do rito — a produção de relatórios por Tagliaferro, lotado no TSE. Esses documentos, segundo a denúncia, depois eram usados pelo ministro para embasar medidas criminais dentro do inquérito das fake news, no Supremo, como se tivessem sido enviados de forma espontânea pela Corte eleitoral. Tais peças foram usadas para embasar decisões importantes de Moraes em desfavor de bolsonaristas.
Na mesma noite em que a reportagem começou a circular, Moraes mostrava-se tranquilo e risonho em um jantar em Brasília. Na manhã seguinte, em conversa com uma pessoa próxima, classificou o caso como “mais uma coisa do extremismo”. Coube ao gabinete dele divulgar um comunicado à imprensa negando qualquer irregularidade. “O gabinete do ministro Alexandre de Moraes esclarece que, no curso das investigações dos Inquéritos 4781 (fake news) e 4878 (milícias digitais), nos termos regimentais, diversas determinações, requisições e solicitações foram feitas a inúmeros órgãos, inclusive ao TSE, que, no exercício do poder de polícia, tem competência para a realização de relatórios sobre atividades ilícitas, como desinformação, discursos de ódio eleitoral, tentativa de golpe de Estado e atentado à democracia e às instituições”, diz trecho da nota.
Tomando como base o que foi divulgado sobre o caso até a última quinta, 15, os argumentos usados por Moraes em sua defesa são sólidos. Na época dos diálogos, ele acumulava a cadeira no STF, onde é relator de investigações sobre fake news e milícias digitais, com a função de presidente do TSE. Por isso, para pedir informações à AEED (órgão cuja colaboração com a Justiça é oficial e permanente), ele teria de oficiar do seu gabinete de ministro do Supremo para o gabinete do presidente do TSE, ocupado por ele próprio. Na prática, equivaleria a oficiar para si mesmo. “Moraes já havia oficiado ao TSE pedindo que a AEED ficasse à disposição. Isso foi formalizado. Não há nada dizendo que essa comunicação tinha, por exemplo, de ser por e-mail. A colaboração já estava firmada”, explica o advogado e professor de direito eleitoral da FGV/SP Fernando Neisser. Além do mais, os relatórios feitos pelo órgão são apenas informativos, abastecidos com informações públicas acessíveis a toda a internet. Daí as referências a posts e reportagens, informações disponíveis a qualquer brasileiro.
A mesma visão é compartilhada de forma praticamente unânime por todos os juristas consultados por VEJA. Independentemente do mérito, logo após a divulgação da reportagem, as engrenagens políticas voltaram suas baterias para Moraes. O senador Flávio e o deputado Eduardo Bolsonaro foram às redes reforçar a narrativa de perseguição ao pai. Em paralelo, iniciou-se uma movimentação no Congresso para pedir o impeachment do ministro, algo improvável de acontecer nesta legislatura. O magnata Elon Musk, que vinha criticando Moraes em sua rede X nos últimos tempos, também não tardou a engordar o coro de apupos — assim como alguns analistas que preferem dar suas opiniões antes de avaliar os fatos que estão na mesa.
Na direção contrária, influentes atores do meio jurídico saíram em defesa de Moraes, afastando também as tentativas de comparação do caso com o dos comprometedores diálogos do episódio da Vaza-Jato, que arranhou a reputação dos envolvidos (sobretudo do ex- juiz Sergio Moro e do ex-líder da força-tarefa da Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol) e abriu as portas para a revisão de uma série de sentenças. Detalhe: na Vaza-Jato, Moro dava ordens para um órgão que deveria ser independente. Moraes, no caso, estava com os dois chapéus, o de ministro do STF e o de presidente do TSE. “Qualquer esforço para equiparar as duas situações é, no mínimo, desonesto”, afirma o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Prerrogativas, grupo de juristas próximos a Lula. O tom no STF foi semelhante. Na tarde de quarta, 14, Flávio Dino, Luís Roberto Barroso, Gilmar Mendes e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, saíram publicamente em defesa de Moraes. “Na vida, às vezes existem tempestades reais, às vezes existem tempestades fictícias. Acho que estamos diante de uma delas”, disse Barroso, atual presidente da Corte. Na mesma sessão, Moraes afirmou que nada temia: “Todos os procedimentos foram realizados no âmbito de investigações já existentes”.
A divulgação dessas mensagens ocorre num momento crucial para bolsonaristas e o próprio STF. Em breve, a Corte julgará ações contra o ex-presidente, e a de maior potencial de estrago é sobre o 8 de Janeiro, processo sob responsabilidade de Moraes. Caso a repercussão do noticiário e novos desdobramentos sejam capazes de gerar de fato arranhões consideráveis à imagem do ministro, a defesa de Jair Bolsonaro naturalmente pode ganhar força — mas só terá chance de êxito se o STF se fragmentar, o que não parece estar no horizonte.
Em uma demonstração de que não pretende mudar o estilo, mesmo em meio à polêmica, Moraes autorizou, na quarta, novas operações tendo bolsonaristas como alvos. Na investigação contra o senador Marcos do Val (Podemos-ES), relatada por Moraes, a PF vasculhou endereços ligados ao parlamentar e aos blogueiros Allan dos Santos e Oswaldo Eustáquio, renovando também os mandados de prisão contra os dois. Ambos estão foragidos no exterior. Como se vê, Moraes continua com as pedras na mão e não vai diminuir a intensidade do seu trabalho. Mas terá de conviver permanentemente com uma nova situação: a de vidraça. Qualquer estilhaço pode ser destrutivo.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906