Estive no sábado 26 na Praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, para acompanhar os esforços de contenção das manchas de óleo e prestar a minha solidariedade ao povo nordestino. Diante de tudo o que presenciei, considero impossível não denunciar o descaso do governo federal com o meio ambiente, a economia e a saúde pública no Nordeste.
O governo do senhor Bolsonaro, ao desestruturar o Ministério do Meio Ambiente (MMA), comprometeu a sua capacidade técnica e operacional para enfrentar situações de emergência ambiental no país. O Departamento de Qualidade Ambiental e Gestão de Resíduos, responsável por definir estratégias para emergências ambientais, teve a sua diretora exonerada em março deste ano, e o cargo só voltou a ser preenchido agora, 35 dias depois que as manchas de óleo tomaram conta das praias do Nordeste.
Não é de hoje a minha denúncia sobre quanto foi enganosa a decisão do governo de não extinguir o Ministério do Meio Ambiente, como havia anunciado. Na prática, ele está desmontando toda a governança e as políticas ambientais do país. Já são muitas as suas marcas nesses dez meses de desgoverno ambiental: extinguiu o Departamento de Educação Ambiental, a Secretaria de Mudanças Climáticas e o Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia; afastou os especialistas e pesquisadores das universidades e das ONGs; restringiu o orçamento de áreas estratégicas e fragilizou a atuação dos órgãos de fiscalização como o Ibama; paralisou o Fundo Amazônia — a lista de desmandos é interminável. O governo inviabilizou em tempo recorde as ações dos órgãos federais responsáveis pela gestão ambiental.
O caso das queimadas na Amazônia e o das manchas de óleo no Nordeste ilustram bem a postura antiambiental do governo Bolsonaro e revelam que não são acidentais a demora e a incapacidade de acionar os meios e os recursos à sua disposição para defender o meio ambiente e a saúde da população. Todos vimos como essa incapacidade aumentou a extensão e a gravidade das queimadas na floresta e das manchas de óleo no litoral. E o governo sabe disso.
No caso da Amazônia, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) constatou a tendência de aumento na destruição das florestas em 4 de julho, quando o Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter) mostrou um incremento de 88% em junho de 2019 na comparação com junho de 2018. A primeira reação do governo foi negar a veracidade dos dados e lançar dúvidas quanto à seriedade da instituição. Em 6 de agosto, o Inpe emitiu mais um alerta: elevação do desmatamento de 278% em julho deste ano em relação ao mesmo mês do ano anterior.
Desprezando esses avisos, o governo só resolveu tomar medidas cinquenta dias depois, quando as queimadas escureceram o céu de São Paulo e produziram uma comoção generalizada dentro e fora do país. Só em 23 de agosto o presidente Jair Bolsonaro assinou uma autorização preventiva para Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para combater os incêndios florestais nos estados da Amazônia Legal. Essa demora causou danos irreparáveis à floresta e à sua biodiversidade, bem como à saúde da população local.
Bolsonaro inviabilizou em tempo recorde as ações dos órgãos federais responsáveis pela gestão ambiental
A lentidão em reconhecer a gravidade da situação e tomar as devidas providências se repetiu na tragédia das manchas de óleo na costa nordestina. É o maior acidente ambiental em extensão já registrado no país: alcançou mais de 200 localidades distribuídas em quase oitenta municípios dos nove estados da região, mais de 2 000 quilômetros, quase um quarto do litoral brasileiro.
As primeiras manchas de óleo chegaram às praias no fim de agosto (mais precisamente no dia 26), e o que se viu desde então foi a inépcia do governo federal. Reconhecido legalmente como Autoridade Nacional do assunto, o Ministério do Meio Ambiente demorou para acionar o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNCA). Isso gerou ações desarticuladas e sem os recursos orçamentários necessários para a situação de emergência e calamidade pública. O MMA falhou também na articulação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), na preparação e orientação da população para minimizar os danos ambientais e evitar prejuízos para a saúde pública das áreas afetadas. Muitos dos protocolos utilizados para a limpeza das praias foram criados pelos próprios voluntários, sendo inclusive seguidos pelos militares do Exército que passaram a atuar na região.
Na avaliação do governo, a extensão da gravidade ainda não foi suficiente para decretar estado de emergência ambiental e de saúde pública na área atingida. A contaminação das praias está afetando de modo dramático a biodiversidade das zonas costeira e marinha, a saúde pública e a economia de toda a região. É assustador pensar que o Brasil é referência na exploração de petróleo em águas profundas, mas não consegue lidar com o derramamento de grandes quantidades de óleo no oceano.
O governo virou as costas para a Amazônia nas queimadas e para o Nordeste no caso das manchas de óleo. Preferiu acusar os defensores do meio ambiente e deixar impunes os criminosos ambientais. São lamentáveis as falas do presidente e do ministro do Meio Ambiente que acusam de maneira irresponsável e sem provas o Greenpeace, assim como fizeram no caso das queimadas na Amazônia, quando insinuaram terem sido provocadas pelas ONGs. É preciso fazer um desagravo às ONGs brasileiras. O governo deveria aprender com o comovente e incansável trabalho dos voluntários para tirar as manchas de óleo — e se inspirar nele —, falar menos e agir mais, unir esforços e não acirrar divisões. E mais: a investigação sobre o derramamento de óleo, que é necessária, não retira do governo a responsabilidade de agir, com rapidez e eficiência.
Nossas riquezas naturais, nossa saúde e nossa vida estão sob sérias ameaças. Já passou da hora de o governo rever a sua política de desmonte. E como, provavelmente, não vai fazer isso por vontade própria, a sociedade brasileira terá de apelar também para uma ação voluntária e exigir a mudança, nas ruas e nas instituições, sem esperar as próximas catástrofes e a próxima temporada de queimadas. É uma questão de sobrevivência.
* Marina Silva, professora de história, ambientalista, ex-senadora pelo Acre e ex-ministra do Meio Ambiente
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659