Lula se articula para revogar atos pró-armas e combater bancada da bala
Uma das primeiras medidas do petista será o revogaço de políticas de Jair Bolsonaro que facilitaram por decreto o acesso da população a armas de fogo
Enquanto tateia o terreno da transição e manda sinais preocupantes sobre temas fundamentais, como a composição do ministério ou os rumos da política econômica, o presidente eleito Lula acena que sabe perfeitamente o que vai fazer em pelo menos um campo: entre seus primeiros atos depois da posse, em 1º de janeiro, estará a revogação de 42 atos de Jair Bolsonaro que facilitaram por decreto o acesso da população a armas de fogo. Lula já explicitou o plano em um encontro com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, segundo pessoas presentes, a reação foi de alívio. Em discurso recente, foi aplaudido ao afirmar que, em seu governo, pretende “distribuir livros e não armas”. O chamado revogaço, no entanto, não vai pôr um ponto-final na questão. Ela estará na pauta no Congresso, aninhada em um grupo de parlamentares que se articula para não dar trégua ao novo governo: a Frente Parlamentar da Segurança Pública, mais conhecida como bancada da bala, de longe a mais coesa de todas as trincheiras bolsonaristas.
Levantamento realizado por VEJA revela que a composição da bancada cresceu e se multiplicou. Os deputados e senadores egressos das polícias e Forças Armadas, que formam seu núcleo duro, somados aos civis que adotaram o ímpeto armamentista como mote de campanha, ocuparão 86 cadeiras na próxima legislatura, em comparação a 71 atualmente — um aumento de 21%. Além de numeroso, o contingente pró-armas está unido na oposição cerrada ao futuro governo do PT e na estridência de seus integrantes.
Entre os eleitos, 24 são do PL, o partido de Bolsonaro. Outra ala tem forte presença nas redes sociais e costuma manter seus barulhentos eleitores permanentemente mobilizados. Há ainda nomes ligados aos movimentos organizados que pregam o direito de o povo andar armado para se defender. A turma não perde tempo: já se reuniu em Brasília, na semana seguinte à eleição, para traçar a estratégia de enfrentamento do revogaço. “Seguirei o que o presidente Bolsonaro determinar”, diz a ex-PM Coronel Fernanda, uma das poucas representantes femininas, de Mato Grosso. “Não vamos admitir nenhum retrocesso, é preciso manter o que foi conquistado”, reforça Alberto Fraga (PL-DF), amigo de Bolsonaro que já presidiu a Frente Parlamentar da Segurança Pública e agora articula a renovada bancada da bala.
Armar a população em nome da segurança e da liberdade individual é argumento controverso que colide com os fatos. Um estudo do Insper que analisou 61 pesquisas sobre o impacto da diminuição do número de armas na sociedade mostrou que, em 90% delas, constatou-se uma redução nas mortes violentas, sobretudo aquelas causadas por motivos banais. Nos Estados Unidos, onde ter arma entrou para o conjunto dos direitos e deveres inalienáveis, cada massacre executado por atiradores solitários levanta a reivindicação de maior controle da venda e dos antecedentes de quem compra, sem sucesso — um poderoso lobby, comandado pela National Rifle Association (NRA), manobra para o assunto refluir, pelo menos até a próxima matança. No Brasil — que tem um equivalente do NRA, o Proarmas, presidido por Marcos Pollon, do PL, o mais votado deputado em Mato Grosso do Sul —, o discurso armamentista em muitas situações serve de disfarce inadmissível para a falência da segurança pública, ao livrar o Estado da obrigação de proteger os cidadãos.
O direito de os brasileiros possuírem armas de fogo foi assegurado em um referendo popular em 2005, quando 64% dos eleitores rejeitaram um artigo do Estatuto do Desarmamento que proibia o comércio do produto no país, a exemplo do que acontece no Japão e no Reino Unido, entre outros. Uma lei foi criada para regular a aquisição de revólveres e pistolas mediante uma série de requisitos, como ser maior de 25 anos, não ter antecedentes criminais e, sobretudo, comprovar a efetiva necessidade de defesa pessoal — morar em áreas isoladas, por exemplo. Essas regras seguem valendo, mas, desde que chegou ao Planalto, Bolsonaro, que fez do ridículo gesto da “arminha” um símbolo de sua gestão, baixou dezessete decretos, dezenove portarias, quatro normas regulamentares e duas resoluções que, na prática, anulam as restrições da legislação. A canetada bolsonarista facilitou o acesso, permitiu maior quantidade de armamentos e munições por pessoa e liberou para cidadãos comuns armas de alta letalidade, como fuzis e carabinas, até então de uso exclusivo das forças de segurança (veja no quadro). “O atual governo desconfigurou a lei, cujo espírito era desarmar a sociedade”, diz Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os decretos surtiram o efeito desejado pelo presidente, que nunca escondeu a pretensão de dar a quem quiser e puder condições de montar um arsenal particular. O número de armas legalizadas quase triplicou, de 695 000 em 2018 para 1,9 milhão agora. Partidos de oposição ingressaram com duas ações no STF questionando a constitucionalidade dos atos, mas seu andamento está suspenso por força de um pedido de vistas do ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro.
Uma vez eleito para o Planalto, Lula decidiu não esperar pelo tribunal e partir para o enfrentamento com um dos blocos mais alinhados ao bolsonarismo, aplicando o mesmo método: vai usar a caneta para revogar tais medidas. Também se cogita a concessão de incentivos financeiros para retirar armas de circulação, como na campanha do desarmamento que, desde 2004, recolheu 865 000 unidades. “A cultura das armas não tem aprovação social, essa esculhambação tem de ser revertida”, diz o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), coordenador da área de segurança pública na campanha petista.
Os principais atingidos pelo prometido revogaço devem ser os donos de armas que se congregam sob o chapéu CAC, a sigla de caçadores, atiradores desportivos e colecionadores. Exceções dentro da regra geral de porte de armas, eles ganharam terreno no governo Bolsonaro. Em vez da licença comum, expedida pela Polícia Federal, que limita a seis o armamento mantido em casa, a autorização dos CACs está a cargo do Exército e sempre foi mais liberal. Agora, graças aos atos de Bolsonaro, eles podem armazenar até sessenta unidades e acumular 180 000 balas por ano. Além disso, um CAC tem o direito de andar armado no carro se estiver a caminho dos clubes de tiro ao alvo. Na prática, é corriqueira a emissão de guias frias por esses estabelecimentos, para livrar o motorista em caso de abordagem policial. O governo Lula quer que os atiradores voltem a se adequar ao limite original de dezesseis armas, devolvendo o resto do arsenal, principalmente os exemplares de maior calibre. “Faroeste não é um direito adquirido”, afirma Flávio Dino, senador eleito pelo PSB cotado para assumir o Ministério da Justiça (leia a entrevista de Páginas Amarelas).
A reação da bancada da bala à revogação dos decretos bolsonaristas já está sendo desenhada. Os deputados eleitos prometem ir à Justiça contra a medida e, claro, levar a questão para o plenário da Câmara. “Vou trabalhar pela aprovação de projetos de lei que validem de uma vez por todas os decretos do presidente Bolsonaro”, diz o deputado federal de primeiro mandato Paulo Bilynskyj (PL-SP). “Não vamos perder o que conquistamos.” Delegado da Polícia Civil, ele é ferrenho defensor do acesso às armas de fogo, mesmo tendo sido alvejado por seis tiros disparados por uma ex-namorada, que se matou em seguida.
Outra estratégia do grupo é manter o público mobilizado por meio de campanhas e vídeos pela internet, e para isso conta com a influência de youtubers e celebridades pró-armas recém-chegados à Câmara. Um dos mais conhecidos é o delegado Da Cunha, agora deputado federal (PP-SP), que foi expulso da Polícia Civil paulista acusado de forjar uma operação de captura de um traficante só para ganhar likes de seus 3,7 milhões de seguidores. “O canal não vai ficar parado. Planejo mostrar as operações de outras polícias e o dia a dia na Câmara”, avisa. Na mídia tradicional, o apoio vem dos deputados federais eleitos Fred Linhares (Republicanos-DF) e Silvye Alves (União Brasil-GO), apresentadores locais do programa Cidade Alerta, da TV Record, que abusa das pautas policiais e do sensacionalismo.
Avessa a argumentos técnicos e racionais, a turma pró-armas carrega o debate de tintas ideológicas, colocando a liberação como uma luta entre o bem (a direita) e o mal (a esquerda). Nos redutos digitais, choveram elogios — depois relativizados, diante do estrago eleitoral — à insanidade cometida pela deputada Carla Zambelli (PL-SP), que caminhou com uma arma apontada em uma rua de São Paulo na véspera da eleição. Além do armamento da população, outras bandeiras da bancada da bala são a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos e o excludente de ilicitude, mecanismo que exime de punição policiais que matam pessoas em confrontos. “Vamos ter de convencer a maioria de que todas essas pautas prejudicam o combate ao crime”, argumenta o senador Fabiano Contarato, um dos poucos ex-delegados nas fileiras do PT. Pela artilharia prometida pela bancada da bala, o tiroteio vai ser feroz. Que ele se desenrole menos na base da coloração ideológica e mais pela razão.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816