Nos últimos dias, os petistas colecionaram motivos para sonhar com a possibilidade de Luiz Inácio Lula da Silva recuperar seus direitos políticos a tempo de disputar as eleições de 2022. A Segunda Turma do STF votou nesta semana a favor de Lula ao referendar o acesso do ex-presidente às mensagens apreendidas com os hackers que invadiram contas do Telegram de integrantes da Lava-Jato, sendo que boa parte desse conteúdo revela a balança da Justiça pendendo a favor da acusação (veja a matéria na pág. 32). Foi uma goleada por quatro votos a um. A decisão foi um sinal eloquente sobre os ânimos do colegiado para outro julgamento envolvendo o ex-presidente, esse mais decisivo: o pedido de suspeição do ex-juiz Sergio Moro na condução do processo do tríplex do Guarujá. O ministro Gilmar Mendes prometeu pautar a ação para o primeiro semestre deste ano.
Lula, é claro, também acalenta o desejo de voltar ao Palácio do Planalto, mas, a despeito do cenário mais favorável, nunca esteve tão cético. Ele tem dito que confia na anulação das condenações por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex, mas não que os magistrados formarão um entendimento semelhante sobre o processo do sítio de Atibaia a tempo de ele entrar em campanha. Com base nesse cenário, chamou o ex-prefeito Fernando Haddad para uma conversa no último dia 30 e pediu a ele que reorganizasse a sua vida com o intuito de correr o Brasil ungido como o postulante do PT à Presidência. Derrotado por Jair Bolsonaro no segundo turno de 2018, Haddad terá agora um ano e oito meses para se viabilizar como um dos favoritos nessa disputa.
Faltou apenas combinar com o restante da esquerda, em que o gesto de Lula em prol de Haddad provocou um duro golpe na já desgastada relação. Dirigentes das principais siglas avaliam que era esperada uma candidatura própria do petismo, mas reclamam de o anúncio ter sido feito sem articulações ou conversas prévias. Guilherme Boulos, presidenciável pelo PSOL, vocalizou no Twitter que debates em torno dos nomes prejudicam a formação de uma frente ampla contra o bolsonarismo. Ele e o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), ensaiam uma coalizão já para o primeiro turno. Após o anúncio do PT, Dino disse a aliados que a conciliação entre as esquerdas está cada vez mais distante e que se dedicará por ora ao plano de se eleger senador. No PDT de Ciro Gomes, o entendimento é o de que Lula quer minimizar as pressões sobre o seu julgamento no STF. “É uma disputa interna, o Lula está guardando vaga”, diz o presidente da sigla, Carlos Lupi. Os pedetistas têm negociado uma coalizão própria, cujo principal ativo era o apoio do PSB. Mas o presidente dos socialistas, Carlos Siqueira, declarou que não tem compromisso com nenhuma candidatura e que pretende lançar um “outsider” na disputa com o objetivo de reestruturar o sistema político nacional. “Precisamos testar nomes que realmente tenham chances de derrotar o bolsonarismo. O PT tem o direito de lançar um candidato, mas nós não precisamos errar junto com eles”, afirma.
Tão logo recebeu a incumbência de Lula, Haddad fez as malas e foi para Brasília acompanhado de Jilmar Tatto, ex-secretário na gestão municipal do petista e que hoje comanda a máquina partidária em São Paulo. Na capital federal, se reuniu com os parlamentares petistas e deixou claro que só será candidato caso Lula não recupere os direitos políticos. É um cenário que se assemelha a 2018, quando o ex-prefeito passou a campanha sendo acusado por adversários de ser o “poste” do ex-presidente. A diferença é que Lula estava preso e só oficializou Haddad como cabeça de chapa a menos de um mês para o primeiro turno. Agora, Haddad trabalhará para convencer setores da sociedade de que é uma autoridade política independente e também para diminuir as resistências internas do PT a seu nome. A presidente da sigla, Gleisi Hoffmann, que nunca se entendeu com o ex-prefeito, disse que vai ajudar com a caravana e que o partido vai repercutir as viagens de Haddad. A turnê começará no dia 24, em Belo Horizonte, e deverá seguir para a Bahia, do governador Rui Costa e do senador Jaques Wagner, que ficaram surpresos com o timing do anúncio, mas não estranharam a escolha de Lula. Embora considere difícil, Costa mantém o desejo de ser candidato à Presidência pelo PT.
Haddad precisará de bons impulsos para turbinar o capital político que construiu ao sair da última eleição com 47 milhões de votos no segundo turno. Sem os holofotes de uma campanha presidencial, foi aos poucos virando um personagem restrito a seu núcleo político original, formado por alas da militância petista e setores mais intelectualizados. Diversas vezes, Haddad declarou que é natural haver mais de uma candidatura de oposição em 2022 e que as alianças deveriam ser construídas pensando num segundo turno contra Bolsonaro.
O risco é que a divisão de forças faça com que nenhum deles tenha fôlego para seguir adiante. Já há um claro sinal de alerta no horizonte. Na eleição de 2018, os candidatos de esquerda somaram quase 40% dos votos. Em simulações recentes para 2022 feitas para VEJA pelo Paraná Pesquisas, a soma das intenções de votos para essa faixa de políticos varia de 23,6% a 24,8%, conforme o cenário. Para Murilo Hidalgo, diretor do instituto, a esquerda perdeu votos por dois motivos. Um deles é o aparecimento de nomes mais ao centro, como Luciano Huck (principalmente) e Sergio Moro. Outro motivo, aponta Hidalgo, é o fato de Bolsonaro ter avançado no eleitorado de esquerda, com o auxílio emergencial. “O voto no Brasil não é muito ideológico, muita gente que votava no PT foi para Bolsonaro, que, por sua vez, perdeu votos do eleitorado de centro e direita para Moro”, diz. Para o sociólogo Antonio Lavareda, a fragmentação à esquerda, combinada com uma possível articulação da centro-direita, poderá resultar num segundo turno sem um candidato dessa faixa política — algo inédito desde a redemocratização: “Para ela ser competitiva se faz necessária uma coordenação”.
O gesto de Lula, sem dúvida, dificultou ainda mais essa aliança. Por causa do divórcio traumático com os petistas em 2018 e de acenos recentes ao centro, Ciro Gomes é visto como uma peça que jamais vai se encaixar em uma coalizão do tipo. Como as nuvens da política podem se realinhar, nada impede que as outras legendas voltem a conversar com o PT. Embora o sonho de Bolsonaro seja justamente o de polarizar novamente com um candidato de esquerda (Lula é o preferido), o psolista Guilherme Boulos acha que o enredo será diferente. “Em 2018, havia um clima de ódio visceral contra o petismo. No pleito do ano que vem, a pauta será o antibolsonarismo”, acredita. Ele bate na tecla de que é preciso por ora priorizar uma coalização em cima de um projeto. Em termos de planos, o que Haddad tem a oferecer é o documento apresentado pelo PT em 2020, no qual a sigla defende ideias como mais gastos públicos para superar a crise, recriação de ministérios e flexibilização de metas fiscais. Com essa fórmula desastrosa e um passado recente de intensa corrupção, dificilmente o PT conseguirá bater Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725