Em setembro de 2019, uma reportagem de VEJA revelou que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, segundo seu próprio relato, foi a uma sessão do Supremo Tribunal Federal (STF), no auge da Lava-Jato, em 2017, com o objetivo de matar Gilmar Mendes, crítico da operação e seu desafeto pessoal. O plano do então todo-poderoso chefe do Ministério Público era usar uma pistola que levava escondida sob a beca, atirar no ministro e, na sequência, cometer suicídio. Na sala reservada aos magistrados, Janot chegou a sacar e engatilhar a arma, mas, segundo suas próprias palavras, o dedo indicador ficou paralisado na hora de disparar, ele viu nisso “um sinal” e desistiu da empreitada. Janot nunca foi bem-visto por uma parte do tribunal, que discordava dos métodos utilizados pela equipe de investigadores. Depois da revelação, o ex-procurador foi alvo de mandados de busca, a pistola foi apreendida e ele ficou proibido de se aproximar de qualquer um dos onze magistrados da Corte. O contra-ataque mais pesado, porém, ainda está por vir.
Depois de terem imposto um golpe letal à Lava-Jato ao anular a condenação do ex-presidente Lula e decretar a suspeição do principal símbolo da operação, o ex-juiz Sergio Moro, integrantes de tribunais superiores agora preparam uma ofensiva contra o ex-procurador-geral, que inclui uma investigação por crime de peculato, uma ação por improbidade administrativa e até um pedido de bloqueio de bens. Com o endosso do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), um processo foi aberto recentemente no Tribunal de Contas da União (TCU) para investigar se os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato, a pretexto de apurar os casos de corrupção, receberam gratificações irregulares ou usaram diárias e passagens aéreas pagas com dinheiro público para fins particulares.
Rodrigo Janot chefiava o Ministério Público, mas não tinha ingerência direta no dia a dia do trabalho dos procuradores de primeira instância, seja em Curitiba, seja no Rio de Janeiro, cidades onde ocorreram as principais fases da operação. Mas isso não será levado em consideração. O Tribunal de Contas da União diz que compete ao procurador-geral da República “autorizar a criação da força-tarefa e os demais atos administrativos de designação dos membros e servidores que a comporão”. Em outras palavras, Janot, quando estava no cargo, seria o responsável por zelar pelo uso de todas as verbas destinadas à Lava-Jato. Mensagens obtidas por hackers que invadiram os celulares dos procuradores da força-tarefa — oriundas da mesma safra que foi usada para demonstrar a parcialidade do ex-juiz Sergio Moro — sugerem que recursos destinados à investigação podem ter sido usados de maneira irregular.
Está nas mãos de ministros do TCU um diálogo, de 7 de dezembro de 2017, classificado como indício de que havia uma esbórnia financeira no Ministério Público. Nele, o então chefe da força-tarefa de Curitiba, Deltan Dallagnol, é informado por uma auxiliar de que existia um saldo disponível no orçamento para o uso dos procuradores em diárias e passagens. Na sequência, ele estimula cinco colegas a “indicarem” voos para zerar os valores que estavam sobrando e alerta: “Quanto mais gastarmos agora, melhor”. Em outro diálogo, Dallagnol informa que fará uma palestra no exterior e que terá as passagens e a hospedagem pagas pelo patrocinador do evento. Em seguida, dá orientações para que seja elaborado um ofício com um pedido de pagamento de diárias para ele e conclui: “Mande para ver se consigo uns trocados, o que não é fácil com eventos não programados”. Juntos, os cinco procuradores citados por Dallagnol na primeira mensagem receberam mais de 2 milhões de reais apenas em diárias ao longo de toda a Lava-Jato.
Capturadas por hackers, essas mensagens, por ordem do ministro do STF Ricardo Lewandowski, foram compartilhadas com a Procuradoria-Geral da República, o STJ e o TCU. A ideia é usá-las, ainda que sejam consideradas uma prova ilícita, para condenar Rodrigo Janot. O processo está sendo municiado também pelo atual procurador-geral, Augusto Aras, que nunca escondeu seu desapreço pelos métodos que procuradores de Curitiba usaram nas investigações do escândalo do petrolão, e é um desafeto declarado de Janot. Aras já enviou ao Tribunal de Contas quase 800 páginas com informações sobre as despesas realizadas pelos procuradores desde as fases preparatórias da Lava-Jato até o último dia do ano passado. VEJA teve acesso à íntegra do material, que mostra que as forças-tarefa da operação em cinco cidades (Curitiba, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Brasília) custaram aos cofres públicos 5,3 milhões de reais em passagens aéreas e pagamento de diárias aos procuradores.
Na Lava-Jato da capital paranaense, apenas o pagamento de gratificações chegou a 2,9 milhões de reais entre 2014 e 2020. As cifras, ainda preliminares, estão sendo compiladas em busca de indícios de mau uso ou desperdício de dinheiro público. A intenção dos ministros do tribunal, caso sejam detectados indícios de irregularidades, é determinar o bloqueio preventivo dos bens e o congelamento das contas bancárias do ex-procurador-geral e dos integrantes da força-tarefa como forma de garantir a quitação de eventuais prejuízos. Há uma certa motivação de vingança por trás das ações de algumas autoridades envolvidas nesse processo contra aqueles que foram responsáveis por desmantelar o maior esquema de corrupção da história. Procurado, Rodrigo Janot preferiu não se manifestar. Em nota, a Lava-Jato de Curitiba informou que o pagamento de diárias e passagens aéreas seguiu a lei e que nunca foi apontada pela auditoria interna ou por autoridades administrativas do MPF nenhuma ilegalidade em seu custeio. De acordo com eles, “os supostos diálogos constantes nessas mensagens, editados, descontextualizados e deturpados, vêm sendo utilizados de forma deliberada e sistemática para fazer falsas acusações contra a operação”.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733