Em mais de quatro décadas como figura pública, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sempre foi considerado um expert da articulação política. Sua capacidade de diálogo com os divergentes, forjada desde os tempos de líder sindical em São Bernardo do Campo (SP), rendeu-lhe a fama de “encantador de serpentes”. Somado a um amplo apoio popular, isso contribuiu para que tivesse uma relativa tranquilidade nas relações com o Congresso em suas duas primeiras gestões. Na versão 3.0, entretanto, o petista chegou ao poder com margem estreita de votos e, no cargo, vê sua popularidade em queda antes de chegar à metade do mandato. Para piorar, tem a menor base parlamentar desde a redemocratização e interage com uma Câmara e um Senado pulverizados e inclinados à direita.
Até aqui, o alardeado poder de sedução do presidente não fez nenhuma mágica na articulação política, campo no qual enfrenta grandes dificuldades. Os sinais têm sido dados desde o início do governo, mas nos últimos dias ficaram mais evidentes com uma sequência de derrotas. Os parlamentares derrubaram o veto de Lula à suspensão das saidinhas de presos e mantiveram o do ex-presidente Jair Bolsonaro à criminalização de fake news em períodos eleitorais. Na sessão, marcada por críticas à articulação e acusações de quebra de acordos, o governo só salvou o veto ao restabelecimento do calendário para pagamento de emendas parlamentares.
Apesar de não ser o primeiro golpe (e provavelmente não será o último), o governo sentiu. Lula imediatamente retomou as reuniões semanais com representantes da Fazenda e da Casa Civil e líderes no Congresso, como o deputado José Guimarães e os senadores Jaques Wagner e Randolfe Rodrigues, além de Alexandre Padilha, em tese o ministro responsável pelas conversas e acordos com o Congresso. O presidente prometeu entrar na negociação política e convocou ministros a fazer o mesmo. O recado foi para os filiados a siglas que comandam pastas na Esplanada, mas se comportam como independentes nas votações, como Republicanos, PP, PSD e União Brasil. O Executivo tentou minimizar as derrotas e atribuiu os reveses ao caráter ideológico das pautas. “Nada do que aconteceu nas sessões do Congresso surpreendeu os articuladores do governo”, disse Padilha.
Parte das dificuldades de Lula reside no fato de ter um governo dividido. O alicerce dele foi construído sobre onze partidos, muitos deles pouco alinhados ideologicamente ou com o projeto político do petista. Um dos casos emblemáticos é o do União Brasil, detentor de três ministérios. Segundo a Quaest, a sigla tem uma das menores taxas de adesão a pautas do Planalto, com 46,7% (veja o quadro). Na questão das saidinhas, só a ex-ministra Daniela Carneiro votou com o governo entre os 58 deputados da legenda. Além de postos na Esplanada, o União Brasil é o quarto partido que mais recebeu verba via emendas parlamentares. A mesma boa condição ao dividir poder e dinheiro abrange outras siglas infiéis, como o Republicanos. Ao mesmo tempo que sonha com o apoio de Lula para eleger o seu cacique, Marcos Pereira, a presidente da Câmara, a legenda dá só pouco mais da metade dos votos de seus deputados ao governo.
A infidelidade também se explica por outro interesse: o eleitoral. Boa parte das siglas não só atua de forma independente, como articula para enfrentar Lula em 2026. É o caso do União Brasil, que tem o governador Ronaldo Caiado (Goiás) em campanha ao Planalto. Ou o PP, cujo presidente, Ciro Nogueira, é o articulador dos convescotes da direita que tenta viabilizar um anti-Lula para a eleição. Fora isso, legendas como o MDB e o PSD (que também tem um pré-presidenciável, o governador paranaense Ratinho Junior) caminham com um pé em cada canoa e planejam condicionar sua entrada na barca lulista a uma posição mais privilegiada em 2026, como a vaga de vice. Enquanto isso, o MDB prioriza a principal campanha da oposição no país — a da reeleição de Ricardo Nunes em São Paulo —, e o PSD divide o seu tempo entre estar com Lula e ter um papel preponderante no governo de Tarcísio de Freitas, um potencial rival do petista.
A geringonça em que se transformou o Executivo é também um sinal dos tempos. O Congresso que saiu das urnas em 2022 é extremamente fragmentado. Não há um grande partido que garanta maioria a um governo. Em 1994, quando FHC foi eleito, PFL, MDB e PSDB somavam 259 deputados, ou seja, mais da metade da Câmara. Hoje, o maior partido da Casa é de oposição, o PL, com 95 deputados. Já a maior legenda governista é o PT, que tem 68 — somados os aliados de esquerda (PSB, PCdoB, PV, PSOL, Rede e PDT), não dá 130 votos.
Se não bastasse, há uma forte divisão dentro das legendas, o que faz com que os líderes tenham dificuldade para entregar os votos da maioria de seus correligionários. O União Brasil, criado em 2021 a partir da fusão entre PSL e DEM, até hoje não conseguiu uma coesão interna. Enquanto Caiado faz planos para derrotar Lula, outro cacique da sigla, Davi Alcolumbre, negocia espaço no governo e conta com o apoio do Palácio do Planalto para voltar à presidência do Senado. “O Congresso hoje é formado por partidos invertebrados, com chefes locais e sem as lideranças que estruturam a maioria. Neste cenário não há possibilidade de se fazer uma coalizão coerente”, afirma o sociólogo Sergio Abranches, responsável por cunhar o termo “presidencialismo de coalizão”. O cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest, tem avaliação semelhante. “Nenhum presidente foi eleito tendo maioria no Congresso, mas, no passado, com um ou dois partidos, ele podia alcançá-la”, afirma.
Também contribuíram para o enfraquecimento da hegemonia do Executivo as mudanças nas emendas parlamentares. A crescente “independência” dos deputados e senadores foi sendo conquistada a partir da apropriação cada vez maior de nacos do Orçamento da União. No governo Jair Bolsonaro, quem deu o tom foi o chamado “orçamento secreto”, um caixa paralelo que permitia aos políticos direcionar livremente dinheiro a suas bases eleitorais. O grande ponto de inflexão, no entanto, foi a expansão das emendas impositivas, que o governo é obrigado a executar. A medida, patrocinada pelo então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, representou dura derrota ao Executivo. Para 2024, o valor reservado a elas será de 53 bilhões de reais — em 2015, ano da mudança, eram 9,7 bilhões de reais. A seu modo, Bolsonaro resolveu o problema da governabilidade entregando poder a Arthur Lira. Lula não tem conseguido isso, mesmo num cenário no qual os partidos de sua base são privilegiados com um grande volume de emendas pagas.
Embora o contexto histórico e político jogue contra o presidente, as dificuldades que ele enfrenta no Legislativo não podem ser atribuídas apenas a isso. Muito da adversidade vem da própria incapacidade e da má organização política do governo. O desempenho de Alexandre Padilha, com quem Arthur Lira nem conversa, é um problema. Outra questão é o fato de as principais lideranças no Congresso serem do PT — como José Guimarães na Câmara e Jaques Wagner no Senado — ou estarem perto de se filiar ao partido, como Randolfe Rodrigues (líder no Congresso). O perfil contrasta com um ministério diverso ideologicamente, tanto que líderes partidários defendem a curiosa tese de que estar no governo não significa ser governista. Por isso, embora ministros tenham se comprometido a atender ao pedido do presidente para atuar no varejo da articulação com os parlamentares de suas legendas, o impacto da medida é visto como baixo por especialistas.
Contribui ainda para a cacofonia generalizada a comunicação deficiente do governo, inclusive de Lula, que se posiciona de forma ambígua em diversas questões. Essa postura, segundo Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), se reflete nos ministérios, onde há forte divergência entre grupos antagônicos, e no PT. “Os erros são fundamentalmente na política. Lula fica nessa dualidade e o governo está desconcertado”, diz. O único “centro de racionalidade”, afirma, é a área econômica, que consegue dar alguma vitória ao governo, em razão do esforço do ministro Fernando Haddad (Fazenda).
Mesmo nessa área estratégica, a atuação não se dá sem percalços. Um exemplo é o da tributação das “blusinhas” — iniciativa de taxar em 20% as compras internacionais de até 50 dólares. O projeto foi aprovado na Câmara, mas esse ponto foi retirado pelo relator no Senado, Rodrigo Cunha (Podemos-AL), o que provocou a ira de Arthur Lira, que acusou o governo de não conseguir manter de pé os acordos que fecha. Os governistas sentiram o cheiro de crise e conseguiram aprovar a medida na quarta, 5, com um destaque apresentado em plenário. Outro imbróglio à vista envolve a Medida Provisória do PIS/Cofins, editada nesta semana, que deixou um grupo de senadores “furioso”. O texto é mais uma das tentativas do Ministério da Fazenda de compensar as perdas com a desoneração fiscal da folha de pagamento e fazer aumentar a arrecadação federal, mas pode impactar empresas do agronegócio e de combustíveis. “Essa será mais uma derrota do governo”, aponta um senador.
Parlamentares e analistas consideram que as vitórias em pautas econômicas ocorreram porque elas convergiram com interesses da oposição, mas isso pode mudar. “Se os índices econômicos piorarem, esse apoio se evapora”, resume o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), vice-líder do bloco que reúne oito siglas, entre elas União Brasil, PP e PDT. Para o governador Ronaldo Caiado, independentemente de a legenda ocupar espaço no governo, o posicionamento em votações se dará sempre pela cartilha do partido. “Como vamos apoiar medidas que giram em torno de gastar mais para o país crescer?”, questiona. Caiado diz que o problema na articulação está em Lula: “Falta comando para mudar os rumos do país, e isso se agrava sob o cenário de deterioração econômica”.
Uma análise bastante comum é que Lula pode dar a volta por cima se conseguir melhorar a sua taxa de aprovação, que está diretamente ligada à capacidade de engrenar um novo ciclo de pujança econômica, algo que parece improvável hoje. Um governo emitindo sinais de que está à deriva será fatalmente a senha para que os partidos com comportamento ambíguo da base pulem de vez do barco. O cenário atual, inclusive, aumenta a especulação sobre a possibilidade de reforma ministerial, uma terapia de choque para tentar rearrumar as forças e a articulação. Por qualquer ângulo que se analise, a conclusão é a de que não há muitos sinais de calmaria em meio ao mar agitado em que se transformou a navegação política de Lula.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896