Criadas para socorrer siglas sem votos, federações têm estreia turbulenta
Traições, ameaças de punição e até abandono do modelo marcam as disputas municipais
Na última segunda, 30, a menos de uma semana das eleições, dois expoentes do Cidadania, o ex-presidente Roberto Freire e o deputado federal Arnaldo Jardim, anunciaram apoio à reeleição do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). Além da declaração tardia, uma outra coisa chamou atenção: o partido que integram tem um concorrente no páreo, o apresentador José Luiz Datena, que é do PSDB, legenda que compõe uma federação com o Cidadania. “Não houve consulta ou prévio entendimento. Não foi uma atitude correta com o nosso candidato”, lamenta o presidente tucano, Marconi Perillo. A traição à luz do dia foi mais um exemplo de tantos que proliferaram pelo país nas eleições municipais deste ano, as primeiras em que esse modelo de agrupamento político foi testado — e, pelo visto, reprovado de tal forma que passou a colocar em xeque esse tipo de casamento de conveniência.
A federação partidária foi criada pela reforma eleitoral de 2021 e seu objetivo era garantir a sobrevivência de siglas sem voto. Há, por enquanto, três agrupamentos desse tipo, sendo o maior deles o capitaneado pelo PT, com PV e PCdoB, que tem oitenta deputados na Câmara. Depois, vêm PSDB-Cidadania, com dezessete parlamentares, e PSOL-Rede, com catorze. A rigor, a legislação que criou o modelo continha apenas uma exigência: que as siglas integrantes permanecessem casadas por pelo menos quatro anos.
Os exemplos de “brigas conjugais”, no entanto, se alastram pelo país. No Rio de Janeiro, o deputado Lindbergh Farias, um dos caciques do PT no estado, caminha pelas ruas pedindo voto ao candidato Tarcísio Motta (PSOL), enquanto seu partido apoia oficialmente Eduardo Paes (PSD). Em João Pessoa, dois colegas do PT na federação, o PV e o PCdoB, abandonaram o candidato petista, Luciano Cartaxo, para apoiar a reeleição de Cícero Lucena (PP). No Rio Grande do Sul, o governador, Eduardo Leite, levou o seu PSDB a apoiar a ex-deputada Juliana Brizola para a prefeitura de Porto Alegre, mas o Cidadania embarcou de forma extraoficial na canoa do atual gestor, Sebastião Melo (MDB).
As traições generalizadas mostram certa ingratidão dos partidos menores. Na prática, as federações são uma alternativa para garantir sobrevida aos nanicos, que não conseguiriam superar sozinhos a cláusula de barreira — como deve ser, ela exige um desempenho mínimo nas urnas para que partidos continuem recebendo dinheiro do fundo eleitoral e tendo direito a tempo de TV e rádio e participação em debates eleitorais (veja o quadro). “Sem recursos públicos, os partidos podem ter maior dificuldade de sobreviver”, afirma Lara Mesquita, cientista política e professora da Escola de Economia de São Paulo, da FGV.
Alicerce fundamental sobre o qual se construiu a ideia das federações, a fidelidade foi jogada para escanteio no primeiro teste, como mostra o exemplo do Cidadania e do PV. No Congresso, eles têm cinco deputados cada um. Sob o advento das federações, são justamente as legendas que mais têm registros de traição. Um dos motivos é a falta de coesão ideológica. “Parte dessas legendas não tem hoje bandeiras e ideias bem definidas. Fica muito difícil ter coesão no próprio partido, quanto mais dentro de uma federação”, diz Leandro Consentino, cientista político e professor do Insper.
Os grandes partidos, que podem sobreviver sem os pequenos, são os que estão mais insatisfeitos com o modelo. Para o PT, que tem a segunda maior bancada na Câmara, a aliança tem trazido mais ônus do que vantagens. A postura do PV e do PCdoB em algumas capitais foi classificada como um problema pelos petistas, que já consideram a possibilidade de se divorciar em 2025, após o fim do prazo de quatro anos. “O sentimento da maioria esmagadora do PT é o de extinguir a federação”, resume um dirigente da legenda. Em Cuiabá, o partido afirmou que tomará medidas judiciais contra candidatos a vereador da federação que não apoiam Lúdio Cabral (PT) — uma ala do PV caminha com Eduardo Botelho (União Brasil). Poucos apostam no futuro do sistema. Em decadência eleitoral nos últimos anos, o PSDB é exceção: estuda ampliar a sua federação e negocia a entrada do PDT e do Solidariedade, dois partidos igualmente em baixa nas urnas.
Uma das intenções mais nobres da criação das federações foi a de usar a regra como instrumento para iniciar a tão necessária reforma política no país. O emaranhado de siglas na selva partidária tem hoje 29 agremiações, uma insanidade. Prova disso é que apenas metade delas conseguiu eleger representantes no Congresso em 2022. Ocorre que o mecanismo para mudar esse cenário aumentou ainda mais a confusão e pode não resistir ao primeiro teste das eleições municipais.
Publicado em VEJA de 4 de outubro de 2024, edição nº 2913