Pela maneira como começou, o duelo entre governo e oposição na recém-criada Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia promete ser bruto. Em entrevista publicada nas Páginas Amarelas desta edição de VEJA, o ministro da Justiça, Anderson Torres, revela que vai requisitar à Polícia Federal informações sobre todas as investigações em curso que envolvem desvios de recursos enviados aos estados e municípios pelo Ministério da Saúde para o combate à Covid-19. Disse isso num contexto em que defendia a ampliação da investigação do Congresso para apurar ações e omissões de autoridades que teriam contribuído para agravar a tragédia sanitária que já passa de 400 000 mortos. A referência do ministro não foi por acaso. É uma estratégia. Torres, um experiente delegado que ainda pertence aos quadros da PF, sabe o potencial do que irá receber. Nos últimos doze meses, foram realizadas 75 operações policiais em 23 estados. Há quebras de sigilo telefônico, delações premiadas e uma infinidade de documentos que mostram a ação de quadrilhas que se aproveitaram da pandemia para desviar dinheiro público, em muitos casos diante da complacência ou em parceria com alguns políticos.
![cpipandemia—comisso-parlamentar-mista-de-inqurito-da-pandemia_51142484996_o.jpg INCOMPETÊNCIA - CPI: parlamentares vão apurar ações e omissões de gestores durante a maior crise sanitária do país -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/cpipandemia-comisso-parlamentar-mista-de-inqurito-da-pandemia_51142484996_o.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Essas informações podem servir para inibir ataques contra o governo, forçar acordos, impedir a convocação de testemunhas, intimidar, constranger, chantagear e até mesmo fulminar adversários. Podem, enfim, ser usadas como uma poderosa arma de ataque ou como um monumental escudo de defesa. E serão. O ministro da Justiça entende que a CPI precisa seguir o dinheiro — e seguir o dinheiro, nesse caso, significa transferir ao Congresso e tornar público um arsenal de suspeitas de corrupção na aplicação dos mais de 60 bilhões de reais que o Ministério da Saúde repassou a estados e municípios desde o início da pandemia. Nesse balaio, há de tudo um pouco. A Polícia Federal já identificou desvios de mais de 2 bilhões de reais, derivados de um rol de fraudes que incluem a compra de equipamentos médicos que não funcionavam, superfaturamento na montagem de hospitais de campanha, aquisição de medicamentos falsos e pagamento de propina. Escarafunchar esse acervo de irregularidades seria uma contribuição importante para descortinar uma das raízes do desastre, mas esse, ao menos por enquanto, não é o objetivo principal do governo. O plano é usar o material como instrumento de pressão.
![CPI-COVID-FLAVIO-BOLSONARO-RENAN-CALHEIROS-2021-02.jpeg **ATENÇÃO**NÃO REUTILIZAR ESTA IMAGEM, SUJEITO A COBRANÇA POR USO INDEVIDO**FOTO EXCLUSIVA PARA A UTILIZAÇÃO APENAS NA REVISTA VEJA**](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/CPI-COVID-FLAVIO-BOLSONARO-RENAN-CALHEIROS-2021-02.jpeg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Instalada por determinação do Supremo Tribunal Federal, a CPI é formada por onze titulares, dos quais apenas quatro são alinhados ao Planalto. No flanco oposto estão políticos experientes e articulados, como Renan Calheiros (MDB-AL), escolhido como relator da comissão e pai do governador de Alagoas, Renan Filho (MDB). O cargo confere ao parlamentar a função de coordenar e supervisionar toda a investigação, o que inclui, entre outras coisas, a tarefa de colocar em votação requerimentos de convocação de testemunhas, estabelecer o cronograma de audiências e, por último, apresentar as conclusões do trabalho. Calheiros é considerado um parlamentar hostil ao governo. Em seu primeiro pronunciamento após assumir o posto, o senador criticou as tentativas dos governistas de afastá-lo do cargo e disse que a investigação não será uma “inquisição” contra autoridades. Sem citar nominalmente o presidente da República, deu as linhas gerais do roteiro que pretende seguir: “A diretriz é clara: militar nos quartéis e médicos na Saúde. Quando se inverte, a morte é certa”. E alertou: “Antecipo que intimidações, e todos os dias nós a vemos, sob qualquer modalidade e arreganhos não nos deterão”.
![MILTON-LYRA-2018-6564.jpg **ATENÇÃO**NÃO REUTILIZAR ESTA IMAGEM, SUJEITO A COBRANÇA POR USO INDEVIDO**FOTO EXCLUSIVA PARA A UTILIZAÇÃO APENAS NA REVISTA VEJA**](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/MILTON-LYRA-2018-6564.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
A advertência incisiva do senador, que acumula um histórico de acusações nada edificantes, foi interpretada como uma resposta a um episódio que havia ocorrido quatro dias antes. Na manhã da sexta-feira 23, quando o nome de Calheiros já havia sido praticamente confirmado como futuro relator da CPI, o lobista Milton Lyra foi alvo de um mandado de busca e apreensão. Ele é investigado em inquéritos que apuram desvios de recursos do Postalis, o fundo de pensão dos funcionários dos Correios. O lobista é suspeito de intermediar operações irregulares que resultaram em imensos prejuízos ao fundo e grandes lucros para ele. Segundo as investigações, Lyra não agia por conta própria. Era preposto de um grupo de políticos do MDB, entre eles Renan Calheiros. A diligência foi considerada extemporânea e fora de propósito, principalmente pelo tempo que se passou desde o início da investigação. “Essa operação não foi coincidência nem foi obra do acaso. Foi, com certeza, um recado”, disse uma pessoa próxima ao relator da CPI. Lyra é um personagem conhecido no submundo do poder. Ele chegou a ser preso em 2018. Na Operação Lava-Jato foi acusado por delatores da empreiteira Odebrecht e do grupo Hypermarcas de receber propina para viabilizar leis de interesse das empresas junto à bancada do MDB no Congresso. Entre os supostos beneficiados do esquema, além de Renan, estaria também o senador Jader Barbalho (PA), membro suplente da CPI. Jader é pai do governador paraense Helder Barbalho, investigado nos tais inquéritos que apuram corrupção na compra de respiradores durante a pandemia.
![LUIZ-HENRIQUE-MANDETTA-2020-10-(84).jpg INTIMIDAÇÃO - Mandetta: governistas vasculham contratos de sua gestão -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/LUIZ-HENRIQUE-MANDETTA-2020-10-84.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Os dois lados armam suas estratégias de enfrentamento. O médico Luiz Henrique Mandetta foi escolhido para inaugurar a série de depoimentos da CPI. Ministro da Saúde de Jair Bolsonaro no início da pandemia, ele foi demitido por divergir do presidente na condução das políticas de prevenção e combate ao coronavírus. Desde então, se transformou num crítico feroz das ações e dos métodos do governo. Mandetta acompanhou de dentro a pregação oficial ao uso da cloroquina, viu a forma com que a gravidade da doença foi minimizada e sofreu pressões para recomendar tratamentos sem embasamento científico. Os parlamentares de oposição acreditam que o ex-ministro pode dimensionar o grau da responsabilidade do presidente da República e de seus auxiliares no agravamento da crise — e pode mesmo. Certamente por causa disso, senadores governistas, ouvidos sob reserva, disseram a VEJA que, para além da oitiva, estão escrutinando contratos e licitações celebrados durante os catorze meses da gestão de Mandetta na Saúde. Cogitam, inclusive, convocar para depor dois ex-assessores do ex-ministro que atuaram no setor de compras do ministério. Pré-candidato à Presidência da República, Mandetta disse que não iria se manifestar.
![OPERACAO-APNEIA-PF-RESPIRADORES-2020-01.jpg CORRUPÇÃO - PF: desvios de 2 bilhões de reais envolvem governadores -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/OPERACAO-APNEIA-PF-RESPIRADORES-2020-01.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
“O governo pode municiar seus senadores, mas nada disso pode esconder o fato de que ele é o maior responsável por essa situação”, disse a VEJA o presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM). E acrescentou: “O governo espalhou cloroquina e ivermectina para tratamento precoce, disse para nos contaminarmos em busca de uma imunidade de rebanho e agora está com receio de investigação”. O parlamentar, que se define como “independente”, ou seja, não se alinha nem com o governo nem com a aposição, ressalta que o objetivo da comissão não é atingir o presidente da República. Mesmo assim, conta, ele tem sido alvo de ataques virulentos nas redes sociais. Aziz, de acordo com versões que circulam na internet, planejaria usar a CPI como trampolim para uma futura candidatura ao governo do Amazonas, em 2022. “A origem dessas agressões e das notícias falsas é o tal gabinete do ódio”, disse ele.
![EDUARDO-PAZZUELLO-MANAUS-SEM-MASCARA-2021-01.jpeg DESMASCARADO - Pazuello: a gestão do ex-ministro foi acusada de travar compra de vacinas -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/EDUARDO-PAZZUELLO-MANAUS-SEM-MASCARA-2021-01.jpeg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Na semana passada, VEJA publicou uma entrevista exclusiva com o ex-secretário de Comunicação da Presidência (Secom), o publicitário Fabio Wajngarten, que provocou um alvoroço entre os senadores, especialmente os de oposição. Sem citar nomes, ele responsabilizou o Ministério da Saúde pelo atraso da vacinação Covid-19 e disse que houve “incompetência” e “ineficiência” no processo de aquisição das vacinas no período em que a pasta era comandada pelo general Eduardo Pazuello. Logo depois de instalada a CPI, foram apresentados cinco requerimentos para convocar o ex-ministro e outros quatro para ouvir o ex-chefe da Secom. De acordo com o publicitário, no início do segundo semestre do ano passado, a farmacêutica americana Pfizer ofereceu 70 milhões de doses de sua vacina ao Brasil, mas o Ministério da Saúde não se interessou. Se o negócio tivesse sido fechado, a imunização começaria em dezembro, e muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Wajngarten revelou que, com o conhecimento do presidente Bolsonaro, ele mesmo tentou fechar um acordo com a empresa, que acabou travado pela equipe de Pazuello. Evidentemente, o Planalto não gostou das revelações do ex-secretário.
![FABIO-WAJNGARTEN-2021-012.jpg TESTEMUNHA - Wajngarten: senadores querem ouvi-lo sobre o caso Pfizer -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/04/FABIO-WAJNGARTEN-2021-012.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
Embora tradicionalmente CPIs se limitem a um acirrado jogo de forças com parcos resultados concretos — honrosas exceções à CPI do caso PC Farias, que acelerou a queda de Fernando Collor, em 1992, e à dos Correios, que em 2005 resultou na prisão de mais de uma dezena de políticos no escândalo do mensalão —, Pazuello é considerado, ao mesmo tempo, o elo frágil do Planalto e uma espécie de arquivo vivo do pior período da pandemia. Ao deixar a pasta da Saúde, em março, o general lançou no ar uma incômoda suspeita: a de que o Ministério da Saúde era uma capitania de apaniguados políticos em busca do que chamou de “pixulé”. Na CPI, ele terá a oportunidade de explicar a insinuação. Flagrado passeando sem máscara no último fim de semana em um shopping em Manaus, o ex-ministro está sendo treinado dentro do Palácio do Planalto para sobreviver à artilharia dos senadores. Aliás, divergências sobre a estratégia de ação e sobre a maneira como o governo deve lidar com o Congresso a partir de agora, particularmente em relação à comissão de inquérito, provocaram atritos entre a recém-nomeada ministra-chefe da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, e o grupo formado pelo chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, e pelo secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni (veja o quadro). Depois da cena constrangedora, Pazuello justificou que estava no shopping para comprar uma máscara nova. Se as explicações do ex-ministro à CPI forem do mesmo nível, o governo que se cuide.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736