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Sérgio Cabral dispara novas denúncias contra políticos para tentar delação

VEJA teve acesso a onze desses detalhamentos, usados com o objetivo de abrandar pena; todos desmentem o ex-governador

Por Cássio Bruno, Mariana Muniz Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h38 - Publicado em 21 ago 2020, 06h00
Confissão de Cabral
CONFISSÃO – Cabral presta depoimento em março de 2019, no Rio: rotina de colaboração com as autoridades – (Jose Lucena/Futura Press)

No Brasil, quando você se torna líder majoritário, é inevitável não cruzar a linha da corrupção”, diz Cabral em entrevista a VEJA (clique para ler).

Na Ala E da notória penitenciária Bangu 8, no Rio de Janeiro, um corredor estreito abriga, lado a lado, seis celas de 6 metros quadrados cada uma. Em uma delas vive Sérgio Cabral, 57 anos, o ex-governador fluminense (2007-2014) condenado a inacreditáveis 282 anos de prisão por corrupção, lavagem de dinheiro e outros crimes relacionados ao astronômico esquema de propinas que ele montou ao longo do mandato. Preso desde o fim de 2016, Cabral resolveu no início do ano passado tomar o caminho de praxe dos políticos, empresários e executivos envolvidos na Operação Lava-Jato para reduzir sua punição e poder ir para casa mais cedo: a delação premiada. A primeira tentativa, um lote de vinte relatos encaminhado ao Ministério Público Federal, foi rejeitada por não trazer novidades. Cabral reviu as histórias, acrescentou detalhes e as apresentou novamente, desta vez à Polícia Federal. A avaliação no meio jurídico é de que o material revisado não traz revelações capazes de dar um salto no que já se sabe sobre a corrupção no país.

Diante da quantidade de nomes com foro privilegiado, a PF encaminhou o calhamaço de 800 páginas ao Supremo Tribunal Federal. Cabral , então, deu mais sorte. Em fevereiro, o STF homologou a delação — ou seja, permitiu que a apuração fosse adiante. No momento, dezesseis casos se encontram na fase de investigação e coleta de provas. O restante foi arquivado por lhes faltar substância. Precavendo-se contra a aparente fragilidade das delações em andamento, o ex-governador prepara-se para voltar à carga: entregará outras 75 denúncias, inéditas. VEJA teve acesso a onze desses detalhamentos, que enredam 24 personagens da política. Todos desmentem Cabral e veem na enxurrada de acusações um ato de desespero para entrar na cobiçada lista dos delatores atrás de alívio de pena.

Paes
INIMIGO - O então prefeito Paes em reabertura do Parque Olímpico de Deodoro, em 2016: o antigo aliado virou alvo – (João Paulo Engelbrecht/PCRJ/.)

LICITAÇÃO COMBINADA

A denúncia — Cabral recebeu a incumbência de tocar a obra do Parque Olímpico de Deodoro com recursos federais. Repassou a tarefa para Eduardo Paes, que direcionou a licitação para a construtora Queiroz Galvão. A propina de 5% seria dividida entre Cabral e Paes, mas no fim o então prefeito ficou com tudo.

O outro lado — Paes diz que a delação de Cabral não tem valor jurídico porque “não encontra respaldo na realidade”. A Queiroz Galvão informou que não se manifesta sobre investigações em curso.

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Entre os casos que a reportagem examinou, três fazem menção ao ex-­prefeito Eduardo Paes, antigo colega de partido e aliado, hoje desafeto, que Cabral parece ter especial prazer em arrastar para o centro de suas acusações. Em uma das delações da nova leva, o ex-governador conta que Paes, depois de empossado, achou por bem reformar a residência oficial, a Gávea Pequena, e pediu a ele que acionasse Fernando Cavendish, da Delta Construções, já então fornecedor privilegiado do governo estadual, para bancar o serviço de 1,5 milhão de reais. Em troca do agrado, Cavendish ganharia em licitação fraudada a construção do Parque Madureira, na Zona Norte carioca, obra de 90 milhões de reais. Em outra suposta fraude, o então prefeito teria combinado com o governador entregar de bandeja para a construtora Queiroz Galvão a instalação do Parque Olímpico de Deodoro, arrecadando propina de 5%.

Ainda em relação a Paes, Cabral conta que Arthur Soares, o rei Arthur, grande benfeitor e beneficiário do esquema criminoso, atualmente foragido, depositou 6 milhões de reais no caixa dois da campanha do ex-prefeito em 2008, arrebatando, em retribuição, o comando do Centro de Operações da Prefeitura e seu lucrativo departamento de contratação de terceiros. Ouvido por VEJA, Eduardo Paes, candidato do DEM à prefeitura do Rio, foi enfático e negou veementemente as denúncias. “Sérgio Cabral é um criminoso confesso. E tenta, a qualquer custo, encontrar uma saída para os crimes que cometeu”, disse. A favor da tese do ex-­prefeito está uma mudança de comportamento do próprio Cabral no tema. Em depoimento ao juiz Marcelo Bretas em 1º de julho de 2019, quando já admitia propinas em seus negócios, o ex-governador negou toda e qualquer participação do então aliado em sua organização criminosa. “Eu nunca pedi nenhum favor a ele e ele nunca me pediu nada. Eduardo Paes não recebeu nenhum tipo de benefício”, disse na ocasião.

Visita Lula e Alexandre Padilha a SJC
PALANQUE - Padilha, com Lula: o ex-ministro teria ido receber o dinheiro – (Lucas Lacaz Ruiz/Fotoarena)

TUDO EM CASA

A denúncia — Cabral conta que, entre 2007 e 2010, Pezão e Hudson Braga se encontraram em suas próprias casas, quinzenalmente, com o então ministro Alexandre Padilha e o assessor Alan Silva, enviados de Lula e do PT para receber a propina por projetos em favelas do Rio pagos com recursos federais. Em duas ocasiões o próprio Cabral mandou seu agente financeiro, Carlos Miranda, entregar 300 000 reais a Padilha.

O outro lado — Padilha diz que se trata de um ataque à sua imagem “sem provas e sem checagem”. Lula afirma que jamais recebeu repasse algum, “direta ou indiretamente”, do ex-governador. Braga mantém que “a fala dele não tem nenhuma credibilidade”. Silva informa que os “supostos convênios” não eram de sua responsabilidade. Pezão não quis comentar.

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Além de um domínio completo na máquina fluminense, que comandou durante sete anos, Cabral desfrutou uma posição privilegiada em nível nacional. Era muito próximo do ex-presidente Lula, com quem já passou réveillons em sua casa de Mangaratiba, e era ouvido para indicações de cargos federais e alianças políticas. No apogeu, embalado por ótimos números no governo estadual e pela ocupação de favelas no programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), foi reeleito com quase 70% dos votos. Descontadas as histórias que ele mesmo confessa, pode-se dizer que foi o melhor governador do Rio nas últimas décadas (o que mostra também o nível dos outros). Seu problema foi não ter percebido o tsunami que se aproximava. Confiando na impunidade, ao ser preso, apesar das muitas evidências de roubalheira, adotou a linha de negar tudo e se dizer injustiçado pelo sistema. Aí, perdeu o bonde — quando resolveu falar, a maior parte do que sabia já tinha sido delatada antes por outros colaboradores. Mas ele continua tentando e se dedica com afinco a rememorar o que viveu.

Extensa, a atual leva de casos deletérios cavuca episódios antigos, como a suposta compra, na disputa pela prefeitura em 1996, de 2 pontos em uma pesquisa do Ibope. Pelo arranjo, Cabral teria pago 200 000 reais ao dono do instituto, Carlos Augusto Montenegro, e ainda repetido a dose em outras duas votações. Consultado por VEJA, Montenegro ironizou: “Uma pessoa que faz declarações como essa não pode estar bem da cabeça”. Outro pecado mais remoto no pacote é uma suposta negociata com a FGV Projetos: em troca de pareceres favoráveis a contratos de serviços superfaturados, tanto a instituição quanto o governador receberiam um troco por fora. A FGV Projetos, atualmente sendo investigada por denúncias de natureza semelhante, afirmou a VEJA que “repudia a reiterada tentativa de desconstrução de sua imagem com base em alegações totalmente inverídicas”.

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OLÉ - Maradona, Cristina, Cabral e Scioli: inauguração de UPA em Buenos Aires – (Carlos Magno/.)

PROPINA DE EXPORTAÇÃO

A denúncia — Cabral apresentou o amigo Daniel Scioli, ex-vice-presidente e atual embaixador da Argentina no Brasil, a Ronald de Carvalho, encarregado da instalação das UPAs do Rio. Scioli o contratou para um projeto semelhante em Buenos Aires e ganhou 10% de propina na obra.

O outro lado — A embaixada argentina não quis se manifestar e Carvalho afirmou que não recebeu “qualquer solicitação para pagamento de vantagem indevida a quem quer que seja”.

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Simpático, e cosmopolita, dado a se divertir pelo mundo, Cabral fez amizades fora do Brasil e, a se crer nos anexos a que VEJA teve acesso, generosamente estendeu a elas sua rede de corrupção. Em uma passagem, o ex-governador conta que o argentino Daniel Scioli, ex-vice do presidente Néstor Kirchner e atual embaixador do país vizinho no Brasil, o contatou quando ainda era governador da província de Buenos Aires para ser apresentado a Ronald de Carvalho, o responsável pela instalação do programa de Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) no Rio. Contato feito, diz Cabral, Carvalho fechou o negócio de 1 milhão de dólares para fazer UPAs portenhas e Scioli ganhou comissão de 10%. A inauguração da primeira unidade teve a presença da então presidente Cristina Kirchner, de Diego Maradona e do próprio Cabral. Procurada, a embaixada argentina em Brasília não quis se manifestar. Já o interesse do ex-primeiro-ministro da Espanha Felipe González, conta o ex-governador, seria em um complexo turístico dentro de uma área de proteção ambiental em Maricá, no estado do Rio. Cabral o teria recebido diversas vezes, a pedido de Lula, e facilitado a obtenção de licenças para a empresa espanhola encarregada da obra. Em retribuição, diz, recebeu 300 000 euros, que repartiu com outros dois facilitadores. Procurado por VEJA, González não respondeu às perguntas.

Lula é citado novamente no trecho em que Cabral requenta um tema de outras delações: os supostos repasses ilícitos ao PT, intermediados pelo ex-ministro Alexandre Padilha, de contratos de obras federais no Rio de Janeiro. Ao já denunciado, ele acresce os seguintes detalhes: 1) o dinheiro era entregue a Padilha por Luiz Fernando Pezão, seu vice e sucessor, e pelo ex-secretário de Obras Hudson Braga, a cada quinze dias, em encontros na casa de um ou de outro; 2) um único repasse alcançou 10 milhões de reais; e 3) o próprio Cabral, por meio de seu operador financeiro Carlos Miranda, providenciou a entrega de 300 000 reais em duas ocasiões. Os envolvidos rechaçam a acusação. Em outro ponto, é Tarso Genro, então candidato ao governo do Rio Grande do Sul, que teria ido ao Palácio Guanabara pedir apoio e doação via caixa dois (e saído com 500 000 reais em duas parcelas). Ouvido por VEJA, Genro levantou a hipótese de Cabral estar “confundindo o candidato”.

Eleicao Presidencial, Botafogo
NÚMEROS - Montenegro, presidente do Ibope: Cabral diz que comprou “2 pontos” dele – (Satiro Sodre/SSPress/.)

PONTOS A MAIS

A denúncia — Cabral, deputado estadual e candidato a prefeito, negociou em 1996 com Carlos Montenegro, do Ibope, uma manipulação de pontos que o pusesse em boa posição nas pesquisas. Pagou 200 000 reais por 2 pontos e conseguiu ir para o segundo turno, mas Luiz Paulo Conde acabou eleito. A “sociedade” se repetiu na eleição de Cabral para governador, em 2006, e na de Eduardo Paes para prefeito, dois anos depois.

O outro lado — Montenegro argumenta que uma irregularidade dessas acabaria com a credibilidade do Ibope e que Cabral “não pode estar bem da cabeça”.

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As esperanças do ex-governador de emplacar como delator ganharam força desde que assumiu a função de preenchedor de lacunas em investigações em andamento. No início do ano, quatro promotores que examinam contratos suspeitos da FGV Projetos passaram o dia inteiro na cadeia de Bangu 8 conversando com Cabral sobre seus negócios com a instituição. Ele também foi ouvido sobre serviços prestados ao governo fluminense pela Gamecorp, empresa de Fábio Luís, filho de Lula, na mira da Operação Lava-Jato. Os contatos dos agentes da PF, promotores e procuradores são feitos por seu advogado, Márcio Delambert. Antes da pandemia, Cabral era levado à superintendência da corporação, na Zona Portuária do Rio, para conversar. Agora, os contatos são a distância — já participou de cinco videoconferências do gênero. No início do mês, ele pediu e recebeu um “atestado” da Polícia Federal, assinado pelo delegado Bernardo Guidali Amaral, da diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, nos seguintes termos: “Reconheço que o colaborador, de forma voluntária, tem apresentado esclarecimentos sobre fatos criminosos diversos”. Na visão do ex-governador, acenos desse tipo podem contar pontos a seu favor.

Na rotina da prisão, Cabral, 15 quilos mais magro, passa a maior parte do tempo lendo e, quando a tristeza chega, costuma tomar um antidepressivo pela manhã e um comprimido para dormir à noite. Entre seus vizinhos de corredor estão o ex-presidente da Assembleia Legislativa Paulo Melo e Wilson Carlos, seu ex-secretário de governo e amigo desde a adolescência. Eduardo Cunha, hoje em prisão domiciliar, chegou a ficar na mesma ala. As visitas dos filhos e da mãe foram interrompidas pela pandemia. Só o mais velho, Marco Antônio, advogado, continua a bater ponto no presídio duas vezes por semana.

Reservadamente, dois ministros do STF ouvidos por VEJA aventam a possibilidade de a delação de Cabral sucumbir ao “fator Palocci” — referência ao descrédito do material oferecido pelo ex-ministro Antonio Palocci por falta de consistência (leia a reportagem na pág. 40). Mas ele persevera. Firme no propósito de inundar a polícia de relatos de delitos próprios e alheios e assim abater a pena multissecular, Cabral já pensa no futuro fora das grades. A um dos policiais, disse que nunca mais voltará para a política. Em relação à mulher, Adriana Ancelmo, também já decidiu o que vai fazer. Ela chegou a ser detida, o que o afetou emocionalmente e foi seu pior momento na cadeia, hoje cumpre prisão domiciliar e namora um advogado. Quem convive com o ex-governador já ouviu que, quando ele sair, “cada um vai seguir seu rumo”.

Publicado em VEJA de 26 de agosto de 2020, edição nº 2701

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