Logo nos primeiros dias do novo governo, Janja Lula da Silva protagonizou uma cena inédita. Driblando os rígidos protocolos de segurança da Presidência da República, a primeira-dama convidou uma equipe de televisão para visitar o Palácio da Alvorada e, no papel de guia, foi mostrando um a um os cômodos da residência oficial. Na parte pública, onde o mandatário recebe os chefes de Estado, havia vidros quebrados, infiltrações no teto e no chão, cortinas sujas, tapetes rasgados, mesas, cadeiras e sofás danificados. Pela primeira vez também se viram imagens da área íntima da casa — a sala de televisão, a sala de jantar e o quarto, com a cama de casal coberta por um pillow branco, amarfanhado, deixando o colchão aparentemente velho à mostra. As imagens evidenciavam a falta de manutenção das instalações e o absoluto descuido com uma das mais belas criações do arquiteto Oscar Niemeyer. Durante o percurso, Janja ainda mostrou espaços completamente vazios e informou que o setor de patrimônio do governo havia constatado o desaparecimento de várias peças da decoração.
As declarações geraram rumores de que os antigos moradores do Alvorada poderiam, por engano ou não, ter levado com eles parte da mobília. No domingo 16, Michelle Bolsonaro, que, no papel de primeira-dama, permaneceu praticamente invisível durante os quatro anos do marido, se pronunciou pela primeira vez sobre o assunto. Em um vídeo postado em sua rede social e sem citar nomes, ela contou que dormiu numa cama velha durante os seis primeiros meses do governo. Para evitar gastos desnecessários, informou que, depois, decidiu levar para o palácio os móveis e utensílios de sua própria casa. “Usei os meus lençóis, na minha cama, na cama de visita, para não fazer nenhuma licitação, porque entendia o momento que estamos vivendo”, explicou. Na sequência, emendou: “Os que pregam a simplicidade e a humildade não querem viver de maneira simples”. Parecia uma crítica indireta a alguém. E, por fim, ironizou: “Agora, eu sugiro que se faça a CPI dos Móveis do Alvorada”. Era, de fato, uma crítica, direta, e tinha como destino a atual primeira-dama.
Depois de exposto o descaso do Alvorada, o governo foi às compras. Uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que foi gasta uma pequena fortuna apenas para equipar uma parte da área íntima da residência oficial. Foram adquiridas onze peças, entre elas, um sofá de três lugares com mecanismo para reclinar a cabeça e os pés (65 000), um de dois lugares também elétrico e reclinável (63 000), uma poltrona de couro italiano com aparador de pés (29 000), duas poltronas de tecido (19 000) e uma cama de casal (42 000). Total: quase 400 000 reais. A troca de farpas entre a ex e a atual primeira-dama, porém, transcende o que parece ser uma patética discussão sobre quem é mais ou menos zeloso com o patrimônio público ou a respeito de quem gosta mais ou menos de alguns luxos. Janja e Michelle, cada uma à sua maneira, se apresentam como peças importantes do novo tabuleiro político. A ex, por exemplo, já se filiou ao PL, assumiu o comando da ala feminina do partido, anunciou que pretende viajar por todo o país e alimenta pretensões eleitorais ambiciosas para 2026.
Janja, ao menos por enquanto, segue uma trilha diferente. Filiada ao PT, ela já disse que quer ter uma atuação efetiva no governo, sem qualquer conotação eleitoral, mas marcante — e, de fato, tem conseguido. O episódio dos móveis, por exemplo, gerou um mal-estar entre ela e o chefe da Casa Civil, Rui Costa, que teria tentado impedir a compra, mas não conseguiu impedir o vazamento da história. Na campanha, Janja esteve o tempo todo ao lado do candidato Lula, participou de reuniões políticas, discutiu estratégias, deu sugestões sobre o que ele deveria falar ou deixar de falar, filtrou a agenda, acompanhou acordos e negociações. No governo, a primeira-dama tem uma sala ao lado da do presidente, onde tem uma agenda própria, recebe amigos, auxiliares do próprio presidente e discute políticas de governo. É considerada uma “ministra sem pasta” e fiadora de toda sorte de decisões sensíveis que possam afetar a imagem do governo e, em particular, do marido.
Pertinentes ou não, são muitas as histórias contadas por auxiliares do presidente que têm a primeira-dama como personagem — todas narradas sempre sob reserva, sempre diante da advertência de que é um assunto muito delicado. Recentemente, Janja bateu de frente com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ao atravessar a comunicação do governo e anunciar em um perfil nas redes sociais a taxação de sites chineses de e-commerce — antecipando uma discussão que gerou pesados desgastes ao governo. Candidatos à sucessão do ministro aposentado Ricardo Lewandowski no Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, atribuem à primeira-dama o papel de “incensar” nomes de sua predileção. Sem intimidade na área jurídica, não caberá a ela, por óbvio, bater o martelo em favor de ninguém, mas supremáveis dizem que garantir a simpatia ou evitar um veto da primeira-dama é fundamental na largada.
Janja, aliás, não gosta de ser chamada de primeira-dama. Afeita às áreas cultural e de proteção do direito das mulheres, é atribuída a ela a escolha da cantora Margareth Menezes para a chefia do Ministério da Cultura, mas são nos meandros das negociações políticas que aliados temem que a desenvoltura da primeira-dama possa se tornar uma usina de problemas políticos. Dois petistas históricos, que em mandatos anteriores de Lula integravam o núcleo mais próximo de conselheiros do presidente, até tentaram recentemente comentar com o mandatário sobre as cada vez mais frequentes intrigas envolvendo Janja. Um deles, ex-ministro, até começou a peroração quando foi interrompido. “Se você continuar, nós vamos perder uma amizade de quarenta anos”, disse Lula. Alertado da reação, o segundo petista começou a conversa pisando em ovos. Também tomou uma invertida. “Lula não admite observações sobre a Janja. Pode ser de quem for”, afirma um terceiro correligionário que ocupou a linha de frente na defesa de Lula na Lava-Jato.
Evidentemente, a primeira-dama também conta com a simpatia de muitos aliados do presidente. “Janja ressignificou o papel de primeira-dama. Ela é um ativo político não apenas do PT, como também do próprio governo”, minimiza o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas e amigo do casal presidencial. Seus detratores, no entanto, receiam não apenas sua influência, mas também seus próximos passos. O que mais incomoda alguns setores do partido são os rumores sobre a possibilidade de a primeira-dama mergulhar de corpo e alma na política. Mais que isso: especula-se que ela estaria se preparando para suceder o próprio marido. “Seria a nossa Evita Perón”, brinca um aliado. A Constituição proíbe que cônjuges dos atuais chefes do Executivo disputem a eleição. Porém, de acordo com um membro do Prerrogativas, grupo de juristas ligados ao PT, existe um antigo precedente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode ser invocado caso esse projeto em algum momento migre do campo das especulações.
Em 2002, a Justiça autorizou que a então primeira-dama do Rio de Janeiro, Rosinha Garotinho, concorresse à sucessão do marido. Na ocasião, a Justiça considerou que ela podia se candidatar porque Anthony Garotinho havia decidido deixar o governo antes do fim do mandato e não disputaria a reeleição. No julgamento, os juízes entenderam que, se o próprio governador podia tentar ser reeleito, mas não havia exercido essa prerrogativa, isso não tiraria o direito do parente de se candidatar. Pelo mesmo raciocínio, na remotíssima possibilidade de Lula abrir mão do governo nos seis meses finais do seu mandato, em tese a decisão favorável à Rosinha poderia ser replicada para beneficiar a esposa do presidente. Na entrevista em que mostrou a má conservação do Palácio da Alvorada, Janja falou sobre essa disputa de poder em Brasília: “O entorno dele (de Lula) sempre teve esse jogo de intriga, às vezes de ataque, sabe? Mas eu resolvi que eu não vou me incomodar com isso”, disse à GloboNews. É cedo demais para saber se Janja e Michelle herdarão a disputa política que envolve o ex e o atual presidente. Mas é bom prestar atenção nas duas.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2023, edição nº 2838