No fim do ano passado, logo depois das eleições, o economista Paulo Guedes, já anunciado como futuro ministro da Economia, procurou o presidente eleito Jair Bolsonaro para tentar convencê-lo a engajar-se numa empreitada audaciosa. O presidente usaria o prestígio e o respaldo das urnas para tentar aprovar antes mesmo de sua posse, nos estertores da administração de Michel Temer, um projeto de reforma da Previdência que já tramitava no Congresso. A ideia: o novo governo ganharia tempo precioso para atacar outros problemas relevantes, pouparia os parlamentares, muitos em fim de mandato, da pressão das ruas e afastaria o Brasil do risco de ser capturado por uma espiral econômica autodestrutiva. O plano parecia interessante. A conversa entre o economista e o capitão, contudo, foi tensa.
“Paulo, como é que vou fazer um negócio desse? Essa roubalheira toda no Brasil. Todo mundo enchendo o bolso…”, disse Bolsonaro. “Tem um grupo de pessoas que depende da aposentadoria, que votou em mim para protegê-lo. Não tenho como trair a natureza do meu mandato parlamentar.” Para Guedes, acendeu-se a luz amarela. Ele sabia, como todos em Brasília, que o deputado Bolsonaro nunca fora um político de viés liberal — ao contrário. O futuro ministro ainda tentou argumentar que apoiar a reforma seria uma demonstração cabal do compromisso do presidente eleito com as promessas de campanha. Bolsonaro, porém, se mantinha irredutível. “Presidente, como posso ajudar alguém que não entende que esse é o maior problema brasileiro?”, perguntou o economista, em tom razoavelmente sereno, mas firme. “Eu não posso te prometer esse apoio agora. Você está me botando numa posição terrível”, respondeu Bolsonaro. Guedes retrucou: “Quando o senhor decidir isso, também estará decidindo se vou ou não ser ministro do seu governo”.
Seis meses depois dessa conversa, confirmada por pessoas próximas aos dois personagens, o ministro garante que nunca houve vacilo do presidente. Em entrevista exclusiva a VEJA, Guedes diz que Bolsonaro está totalmente empenhado em aprovar a reforma nos moldes em que o projeto foi enviado pelo governo ao Congresso. A proposta prevê mudanças que gerariam uma economia de até 1,2 trilhão de reais aos cofres públicos nos próximos dez anos. É, de acordo com a equipe econômica, a senha para o Brasil deixar a crise de lado e impulsionar o crescimento. O contrário disso seria o caos, que pode, segundo o ministro, ocorrer já em 2020.
Desde que se mudou para Brasília, o carioca Guedes, 69 anos, mora num hotel. Não é por comodidade, tampouco por acaso. É um sinal de desapego com a capital e um modo de passar outra mensagem, a da evidente transitoriedade de sua permanência no Planalto. Guedes é muito claro, em uma postura que embute o respeito ao que foi acordado: se houver uma mudança muito radical na proposta original da reforma, se aprovarem, como alguns defendem, uma espécie de remendo chamado jocosamente de “reforminha”, ele renunciará ao cargo. “Pego um avião e vou morar lá fora”, avisa. “Já tenho idade para me aposentar.” A seguir, os principais trechos da entrevista, em que o ministro também fala de política, de suas relações com o presidente Bolsonaro e do desempenho do governo, ao qual concede nota 7,5.
CORTE DE PRIVILÉGIOS
A reforma da Previdência, segundo o ministro, não está sendo apresentada apenas para equilibrar as contas públicas. Ela também se propõe a corrigir enormes desigualdades, como a que autoriza um servidor público a aposentar-se antes dos 65 anos com um salário vinte vezes maior que o salário médio da população
“O Brasil, que tem 13% de idosos em sua população, já gasta mais com Previdência que o Japão, que terá daqui a uns anos 40% de idosos. O quadro é absolutamente calamitoso. Antes, eram catorze jovens trabalhando para garantir a aposentadoria de um idoso. Hoje, são sete. Um dos grandes problemas da Previdência é que ela é uma fábrica de desigualdades, uma máquina perversa de transferência de renda. Tira-se de quem tem menos e passa-se para quem tem mais. Hoje, 83% dos aposentados brasileiros ganham menos de dois salários mínimos. A pessoa que trabalha no Legislativo ganha cerca de vinte vezes mais que a média do INSS. Isso é um absurdo. O que estamos propondo é fechar essa fábrica de privilégios. Lá na frente, a empregada doméstica e a patroa vão se aposentar no mesmo regime.”
O DESASTRE DE 2020
O projeto que muda a aposentadoria deve ser votado na Câmara até o fim deste semestre. Se o resultado for positivo, poderá ser o início de um caminho virtuoso que conduzirá o Brasil a outro patamar social e econômico. A derrota representará o início de um colapso, atalho para levar o país a um estado de convulsão
“Se não fizermos a reforma, o Brasil pega fogo. A velha Previdência quebrou. Não vamos ter nem dinheiro para pagar aos funcionários. Vai ser o caos no setor público, tanto no governo federal como nos estados e municípios. A Previdência é hoje um buraco negro, que engole tudo ao redor. O déficit tem crescido cerca de 40 bilhões de reais por ano. A reforma é urgente, porque os mercados não vão esperar muito mais. Eles fogem antes. A engolfada pode vir em um ano, um ano e meio. Quando os mercados sabem que o negócio vai quebrar daqui a três ou quatro anos, eles antecipam os movimentos. O dólar já começa a subir, a bolsa começa a afundar e a classe política, que poderia estar trabalhando numa agenda construtiva de descentralização de recursos, começa a se afastar dessa pauta para apostar num impeachment. Esse é o diagnóstico: a curto prazo, podemos virar uma Argentina, com 30% a 40% de inflação. A médio prazo, antes de o governo acabar, uma Venezuela, com desabastecimento, inflação alta, dólar explodindo, zero investimento, desemprego elevado, atraso de salário, atraso de pagamentos a aposentados e pensionistas.”
REFORMINHA, NÃO
O ministro sempre insistiu que a reforma da Previdência precisa gerar uma economia de, no mínimo, 1 trilhão de reais nos próximos dez anos. Diante das dificuldades de aprovação no Congresso, Guedes reconhece que há uma margem de negociação, que pode no máximo ir a 800 bilhões de reais. Menos que isso, será um remendo, incapaz de resolver o rombo das contas públicas
“Se os parlamentares aprovarem algo que represente uma economia menor que 800 bilhões de reais, não há a menor possibilidade de lançar uma nova Previdência. Estaríamos só remendando a velha. Não adianta dizer que é melhor assim, que assim não machuca ninguém, que é uma mudança levinha, que vai garantir os quatro anos do presidente e a sua eventual reeleição. Também não adianta quando o Paulinho (da Força, deputado federal do Solidariedade) fala assim: ‘Vamos fazer uma reforma pequenininha para o presidente não ficar’. Paulinho estava falando o que muitos pensam. Ou seja, ele sabe que a reforma da Previdência vai resultar em prosperidade ao Brasil e que o presidente Bolsonaro pode se beneficiar politicamente disso. Eu até usei essa declaração dele numa conversa com o presidente. Disse assim: ‘Presidente, uma reforminha dói pouco, mas ela interessa aos seus opositores’. Ele compreendeu.”
REELEIÇÃO
No Congresso, de fato, há muitos parlamentares que pensam como o deputado Paulinho da Força. Aprovar a reforma da Previdência da maneira como defende a equipe econômica daria ao presidente amplas condições de governabilidade, abrindo a sempre tentadora vontade de sucessivas reeleições — embora Bolsonaro já tenha se mostrado contrário a essa ideia
“Durante a campanha, eu e o presidente conversamos muito sobre isso. Ele chegou a falar várias vezes que não tem apego. Repete até hoje: ‘Eu não tenho apego à reeleição’. Mas o problema não é propriamente a reeleição — é o dirigismo. Se você combater o dirigismo, uma reeleição não é tão nociva assim. Nos Estados Unidos, tem reeleição, porque lá a economia não é estatizada. Bolsonaro, porém, faz uma ressalva. Ele não tem apego ao cargo em si, não pensa em reeleição, mas há um ponto a ser considerado. A posição dele é a seguinte: ‘Se nós estivermos, no meu mandato, longe da situação da Venezuela, eu posso até abrir mão. Agora, se tiver alguma ameaça de acontecer aqui o que se passa lá, estou aqui para servir à população brasileira’.”
SAÍDA DO GOVERNO
No ano passado, Paulo Guedes pensou em não assumir o cargo. Agora, diz que deixará o governo se a reforma da Previdência não for aprovada ou mesmo caso ela saia do papel mutilada, com economia inferior a 800 bilhões de reais
“Deixa eu te falar um negócio que é importante. Eu não sou irresponsável. Eu não sou inconsequente. Ah, não aprovou a reforma, vou embora no dia seguinte. Não existe isso. Agora, posso perfeitamente dizer assim: ‘Olha, já fiz o que tinha de ter sido feito. Não estou com vontade de ficar, vou dar uns meses, justamente para não criar problemas, mas não dá para permanecer no cargo’. Se só eu quero a reforma, vou embora para casa. Se eu sentir que o presidente não quer a reforma, a mídia está a fim só de bagunçar, a oposição quer tumultuar, explodir e correr o risco de ter um confronto sério… pego o avião e vou morar lá fora.”
CONVICÇÕES LIBERAIS
O ministro reafirma, porém, sua confiança nas convicções de Bolsonaro — e acredita em uma união política em torno da agenda econômica do governo
“Eu confio na confiança que o presidente tem em mim. Ele falou desde o início da campanha: ‘Tenho lá o meu Posto Ipiranga, o Paulo Guedes’. Então, essa confiança no meu diagnóstico me dá absoluta certeza de que ele me apoia, e eu compreendo o esforço que ele está fazendo para me apoiar. Ele mesmo disse certa vez: ‘Eu não era a favor da reforma da Previdência, Paulo. Sempre fui contra. Mas você me convenceu da importância disso para o país’. A classe política está comprando a agenda econômica, porque ela não é só uma agenda econômica. Ela é também uma agenda política. Por exemplo: quando você fala na Previdência, em pacto federativo, em descentralizar os recursos para os estados e municípios, isso também interessa ao prefeito de esquerda. Essa, na verdade, é uma plataforma de toda a classe política brasileira. O descontrole sobre o gasto público corrompeu a política e estagnou a economia. Essa é a essência da minha posição.”
CENTRO-DIREITA
Bolsonaro chegou ao poder com o desafio de incorporar em seu governo o que ele chama de nova política, evitando o tradicional toma lá dá cá. No entanto, o presidente tem encontrado dificuldades para consolidar uma base aliada no Congresso para aprovar as propostas, incluindo a da Previdência. Para o ministro, essa instabilidade será superada com uma aliança política em torno das propostas econômicas
“São apenas quatro meses do novo Congresso. Muita gente nova, inexperiente, mas bem-intencionada. Está tendo muita conversa, muito entendimento. Qual a linguagem dessa nova base? A crítica era que a linguagem era toma lá dá cá. A nossa primeira tentativa de formação de uma base foi temática, juntando a bancada da segurança, a bancada do campo… A segunda é a econômica. Há um consenso sobre a necessidade das reformas. Agora, está faltando a que é a mais importante delas: a política. Assumir que somos a centro-direita.”
CONTINGENCIAMENTO
Os recursos que foram temporariamente bloqueados em diversas áreas do governo, como na educação, poderão ser liberados caso a reforma da Previdência seja aprovada e a economia apresente sinais de recuperação. Se isso não acontecer, as universidades e as Forças Armadas deverão parar por falta de dinheiro
“O Brasil está se dissolvendo devagarzinho. O governo passado previa um crescimento que não ocorrerá sem as reformas. Portanto, a arrecadação e o crescimento estão vindo abaixo do que foi previsto. Estamos tendo de rever as previsões que eles deixaram contingenciando gastos. Isso quer dizer que as Forças Armadas param em setembro. E as universidades, em agosto ou julho. Não vai ter dinheiro. Se a gente fizer as reformas, a economia vai retomar o crescimento e as receitas vão voltar. Aí, podemos fazer uma aposta no futuro e descontingenciar vários desses cortes.”
CRESCIMENTO
Devido aos fracos sinais da retomada da economia, o mercado tem reajustado para baixo as projeções de crescimento do PIB para 2019. Guedes diz acreditar que, com a aprovação da reforma da Previdência, haverá um horizonte mais claro de crescimento, atalho para otimismo dos economistas e investidores em relação ao Brasil
“O mercado viu que, durante a campanha, Bolsonaro apoiou a plataforma de reformas e, quando entrou na vida real, percebeu o atrito que existe no Congresso, o que é natural porque está chegando governo novo que se recusa às práticas antigas. Os presidentes da Câmara e do Senado tomaram a liderança e estão a favor da reforma. A classe política está digerindo os novos métodos. Estou absolutamente otimista de que eles vão corresponder às expectativas da sociedade. Tenho absoluta confiança em que vai sair a reforma de 1 trilhão e que as revisões de crescimento para cima serão feitas a partir da reforma, que vai clarear um horizonte fiscal por dez anos. É evidente que ela vai deflagrar ondas de investimento interno e de poupança externa. Hoje tem uma nuvem negra no Brasil. Na Argentina já é uma tempestade e na Venezuela é um furacão.”
PRIVATIZAÇÕES
Apesar da aparente sintonia, um dos principais pilares da equipe econômica, as privatizações, tem encontrado resistência dentro do próprio governo
“Bolsonaro tem apoiado cada vez mais as privatizações. VEJA fez uma entrevista em que o Salim Mattar (secretário de Desestatização) se dizia frustrado com as dificuldades em tocar o processo. Naquela época, o presidente até me falou: ‘O Salim nem conversou comigo ainda… Como ele pode dizer que sou contra as privatizações?’. O presidente não é contra as privatizações. A única coisa que ele quer e exige é que a população saiba o que está acontecendo. Como estão os Correios? O que fizeram com eles nos últimos anos? O que fizeram com o Postalis (fundo de pensão dos funcionários dos Correios)? Quebraram o Postalis, e 100 000 carteiros estão com dificuldades. Ele quer que mostre isso para a população para ela entender por que vamos privatizar os Correios, por exemplo.”
O DESEMPENHO DO GOVERNO
O ministro avalia que a gestão Bolsonaro poderia ter ido melhor em seus primeiros meses, mas ressalta: apesar do pouco tempo, as principais promessas de campanha já foram apresentadas
“De zero a 10, dou 7… 7,5. O governo está excepcional? Não. Se na política tivéssemos conseguido fazer rápido a aliança entre centro e direita, se vocês, da imprensa, tivessem feito a sua parte, explicando para todo mundo entender, poderia ser 10. Eu poderia até falar que a nota do presidente está mais alta. Porque comigo ele assumiu compromisso. Nomeei a minha equipe inteira sem nenhuma interferência. Para ele, tenho de dar 10. Vejo as dificuldades e, ao mesmo tempo, a boa intenção do presidente. Ele passou dez, doze dias no hospital, e o novo Congresso só chegou trinta dias depois. O governo só começou, na verdade, no dia 1º de fevereiro. Tivemos pouco mais de um trimestre de trabalho. Nesse período, o presidente encaminhou a reforma do Moro e mandou a reforma da Previdência. O Executivo fez a parte dele.”
Publicado em VEJA de 29 de maio de 2019, edição nº 2636
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