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Ameaças à Lava Jato e confusões no PSL espantam eleitores de Bolsonaro

Desconfiança de que o combate à corrupção ficou em segundo plano provoca baixas em alguns dos principais grupos de apoio ao presidente

Por Nonato Viegas
Atualizado em 4 jun 2024, 15h29 - Publicado em 11 out 2019, 06h00

Há quem desconfie que o presidente Jair Bolsonaro, por tática ou estratégia política, anda capitulando em relação ao discurso de combate à corrupção. Há quem tenha absoluta certeza. Na quar­ta-­feira 2, a Operação Lava-­Jato sofreu a sua mais contundente derrota até agora. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que delatados têm o direito de apresentar suas alegações finais depois dos delatores, em respeito ao princípio da ampla defesa. Isso abre espaço para que condenações aplicadas a protagonistas do maior escândalo de todos os tempos sejam revistas, como a imposta a Lula no caso do sítio de Atibaia. Fosse em outra época, Bolsonaro estaria estrilando contra o STF em manifestações públicas e nas redes sociais. Desta vez, não se ouviu uma única palavra, uma mísera crítica, nenhum comentário contundente daqueles que costumavam incendiar a militância, que respondia com protestos e manifestações. Alvejada em diversos flancos, a Lava-Jato enfrenta seu momento de maior fragilidade. E a passividade do presidente diante disso já começa a provocar fissuras no bolsonarismo.

Antes de assumir o Palácio do Planalto, Bolsonaro chegou a cogitar o aumento do número de ministros do Supremo de onze para 21, a fim de ter maioria de votos no plenário e garantir o empenho do tribunal no combate à corrupção. Mas os tempos são outros. Passados pouco mais de nove meses de mandato, o presidente diz ter selado um pacto de harmonia com o Judiciário. Em privado, comemora as decisões dos ministros do STF Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que suspenderam as investigações abertas contra o senador Flávio Bolsonaro, seu primogênito, acusado de embolsar parte dos salários dos servidores de seu gabinete quando era deputado estadual no Rio. O Supremo, quem diria, antes um alvo preferencial, se tornou parceiro da primeira-­família da República. Essa aproximação gera incômodo em parcela dos apoiadores de Bolsonaro. Nas redes sociais, disseminaram-se uma cobrança e uma suspeita. A cobrança: por coerência com o que disse na campanha eleitoral, Bolsonaro deveria repudiar a decisão do Supremo contrária à Lava-Jato. A suspeita: Bolsonaro não dá um pio porque sua prioridade agora é afagar os ministros do STF e blindar seu filho Flávio, e não mais combater a corrupção. A cobrança e a suspeita juntas estão empurrando o presidente para o canto do tabuleiro.

É o que mostra um trabalho realizado pela pesquisadora Isabela Oliveira Kalil, doutora em antropologia social pela Universidade de São Paulo e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política e da PUC-SP. Isabela acompanha desde 2016 os movimentos que foram às ruas e que convergiram para eleger Bolsonaro. Com base em monitoramento constante e entrevistas, ela separou o universo de eleitores de Bolsonaro em dezesseis perfis, como “pessoas de bem” e “homens viris” (veja o quadro). Quase todos têm algo em comum: o apreço pelo combate à corrupção e a admiração pela Operação Lava-Jato. Com o desenrolar do governo, passaram a compartilhar também de certa decepção. E é essa decepção que já está provocando baixas dentro do bolsonarismo. “Bolsonaro tem hoje algo próximo de 10% dos eleitores formando sua base mais fiel”, diz a pesquisadora, ressaltando que essa turma o acompanha desde antes da candidatura presidencial e dificilmente o abandonará. São os menos sensíveis ao discurso anticorrupção. “Eles apresentam uma espécie de apoio incondicional.”

Já outros 20% são formados por um eleitorado mais volátil e que não endossa todas as posições de Bolsonaro. Entre eles, há os que são considerados “pragmáticos” e seguem mobilizados no apoio ao presidente por entender “o seu jeito de ser” ou por ser “muito cedo para esperar resultados”. Mas há também aqueles menos benevolentes, que podem aderir aos demais 70% dos eleitores, para quem Bolsonaro faz um governo regular, ruim ou péssimo. A professora lembra que, durante a campanha, Bolsonaro conseguiu ampliar seu leque de apoiadores — antes formado majoritariamente por homens e jovens — ao incluir segmentos identitários, como mulheres, gays e indígenas. As manifestações de rua, o impeachment de Dilma e a Lava-Jato levaram diferentes grupos a embarcar na candidatura de Bolsonaro. Foi o caso das tais “pessoas de bem”, que se orgulhavam de assim se apresentar e de declarar voto em Bolsonaro. Agora, parte dos cidadãos de bem anda ressabiada com o presidente. Não à toa.

As pessoas entrevistadas por Isabela reclamam, por exemplo, da redução da autonomia da Polícia Federal e da resistência do governo à criação da CPI da Lava-Toga, destinada a investigar o Poder Judiciário. A satisfação com Bolsonaro caiu, enquanto a exaltação a Moro ficou estável, mas num patamar muito superior. O Datafolha também detectou esse fenômeno. Pesquisa divulgada recentemente mostra que o ministro da Justiça é aprovado por 51% dos entrevistados, e o presidente, por apenas 29%. O lavajatismo, por enquanto, parece mais forte que o bolsonarismo. O empreendedor Carlos Henrique Bastos trabalhou pela eleição de Bolsonaro como “influenciador digital”. Em 2018, usou os 100 grupos de Whats­App de que é administrador, com cerca de 15 000 cadastrados, para propagar as ideias do capitão. “Agora vamos mudar o nome de ZapBolsonaro para ZapBrasil. O que adianta para nós que defendemos a Lava-Jato ter um presidente que é pit bull na ONU mas que no seu país age como um poodle?”, diz Bastos.

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FRAQUEZA – Congresso: sucessivas derrotas do pacote anticrime de Moro (Adriano Machado/Reuters)

O empreendedor não quer o im­peach­ment do presidente nem se declara de oposição, mas afirma que tem posicionamento crítico. “A Lava-­Jato nunca esteve tão ameaçada”, sentencia. Em seguida, dispara contra Flávio Bolsonaro: “Quem não deve não teme. As atitudes dele são muito semelhantes às que vi em caciques do PSDB, PT e MDB pegos na Lava-Jato, e isso as pessoas não aceitam”. Definida na pesquisa como “feminina e bolsogata”, “cidadã de bem” e “influenciadora digital”, a curitibana Ana Claudia Graf mantém uma página no Facebook com 95 000 seguidores. Depois de apoiar Bolsonaro na campanha, também optou pela postura crítica e independente em relação ao presidente. “Ele não é Deus e como homem pode errar. Decidi, então, apontar o que considero seus erros. Não quero que o governo vá mal. Ao contrário, minha crítica é para que se corrija o rumo”, afirma. “Defendo ideias, como o combate à corrupção, não pessoas, porque não tenho político de estimação.”

Estudante de direito em uma instituição privada graças ao Fies, programa expandido no governo do PT, Carmélio Lins Tomaz Junior se enquadra nos perfis “estudantes pela liberdade”, e “periféricos de direita”. Ele diz que, durante a campanha, a promessa de Bolsonaro de combater criminosos e corruptos conquistou seu voto. “Eu me identifiquei com seu discurso e me sentia representado por sua fala dura e firme. Eu estava muito decepcionado com a corrupção na política. Vi nele um homem íntegro, sem envolvimento com a corrupção. Além disso, Bolsonaro era uma novidade num ambiente repleto da velha política.” A exemplo de outras pessoas com o perfil “periféricos de direita”, o estudante acha que o Estado é ineficiente na elaboração de políticas de segurança pública para regiões de renda mais baixa e culpa a roubalheira pela pobreza no país. “Mas descobri na prática que aquele discurso rigoroso contra os malfeitos era só discurso, a começar pela forma como Bolsonaro tenta proteger o filho”, diz.

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No julgamento em que decidiu que réus delatados têm direito a se manifestar depois das acusações apresentadas por delatores, o STF pavimentou o caminho para que diversas sentenças da Lava-Jato possam ser anuladas. Pelas projeções um tanto apocalípticas da força-tarefa de Curitiba, pelo menos 32 processos estão em risco — entre eles o que condenou o ex-presidente Lula a doze anos no caso em que é acusado de ter recebido propina por meio da reforma de um sítio. Ainda não há uma data para que se estabeleça em que circunstâncias réus delatados podem ter suas condenações anuladas. Mas há um segundo e ainda mais potente petardo engatilhado contra a Lava-Jato. Ainda neste mês, o STF deve decidir em definitivo se réus condenados em segunda instância podem começar a cumprir pena antes de esgotados os recursos judiciais. Se a Corte determinar que não, praticamente todos os condenados na Lava-Jato deixarão a cadeia.

O fato é que os interesses de Bolsonaro hoje não se coadunam com os dos lavajatistas. Em nome da governabilidade, o presidente atua nos bastidores para impedir a instalação da CPI da Lava-Toga, o que já provocou um racha em seu partido, o PSL, agravado na última terça-feira, depois de Bolsonaro dizer a um simpatizante, na saída do Palácio da Alvo­rada, para ele esquecer o PSL e que o cacique da legenda, Luciano Bivar, está “queimado pra caramba”. O presidente também avalizou a retirada do antigo Coaf — cujas descobertas deram origem à investigação contra Flávio — da alçada do Ministério da Justiça, comandado pelo ex-­juiz Sergio Moro. Bolsonaro não moveu uma palha para impedir o Congresso de derrubar seus vetos à lei de abuso de autoridade, que enfrenta forte resistência da força-­tarefa da Lava-Jato. E, por fim, o presidente também silenciou sobre a derrota no Congresso do pacote anticrime, a principal bandeira de Moro, com a supressão da proposta de prisão para os condenados em segunda instância.

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Resultado: consolidou-se a impressão de que Bolsonaro, mais do que enfrentar corruptos, quer controlar os órgãos de combate à corrupção. Esse é um dos motivos pelos quais o seu eleitorado rachou entre bolsonaristas e lavajatistas. O primeiro grupo defende a figura do presidente acima de qualquer coisa. O segundo, no entanto, acha mais importante defender o combate à corrupção do que o próprio Bolsonaro — e vê no ex-juiz, responsável pelos principais processos da Operação Lava-Jato, a única figura com capacidade para assumir esse papel. Em entrevista a VEJA, publicada na edição passada, Moro afirmou que não disputará a eleição presidencial de 2022 e que apoia a reeleição do chefe. As declarações agradaram a Bolsonaro e serviram para amenizar intrigas, mas não mudaram uma percepção reinante no meio político: de que o presidente tem se afastado cada vez mais da retórica anticorrupção que garantiu sua ascensão ao Planalto e que ainda serve de combustível para uma enorme massa de apoiadores.

Publicado em VEJA de 16 de outubro de 2019, edição nº 2656

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