O Brasil do ano que se encerra pode ser resumido em hashtags, memes e insultos concorrentes: #Elenão e #Elesim, “coxinhas” e “mortadelas”, “petralhas” e “bolsominions”. Essas simplificações típicas do bate-boca na internet desvelam fissuras mais profundas na sociedade, que vieram à tona como nunca durante as últimas eleições — e não dão sinal de que desaparecerão tão cedo. Eleito presidente com 57 milhões de votos, Jair Bolsonaro encarna o polo vencedor em uma sociedade encurralada em categorias que se acreditava já estarem ultrapassadas, como comunismo e fascismo, fantasmas que foram resgatados do passado. Com um forte discurso anticorrupção e em defesa do que considera “valores da família”, Bolsonaro reivindica exclusividade sobre o campo conservador — e os entusiastas do novo governo não hesitam em tachar de esquerdistas até conservadores históricos que porventura critiquem os vezos populistas de seu líder. Tornou-se célebre uma apresentação de Power Point do deputado eleito Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP), aliado de Bolsonaro, classificando o DEM, herdeiro do PFL e, consequentemente, da Arena, como “centro-esquerda”. Convertido ao discurso bolsonarista, o governador eleito de São Paulo, João Doria, também perverteu os conceitos políticos tradicionais: acusou o adversário Márcio França (PSB-SP) de ser aliado do PT e até comunista — ainda que França tenha sido vice-governador de Geraldo Alckmin, que é do mesmo PSDB de Doria.
O embate às vezes duro entre visões divergentes é, por definição, parte da vida democrática. Em um debate polarizado, no entanto, cada um dos lados, convicto do acerto absoluto de suas ideias extremas, deseja não só a derrota, mas o fim dos opositores. Bolsonaro, em discurso transmitido por celular a um comício na Avenida Paulista, falou em expulsar os “marginais vermelhos” do país, enquanto seu adversário no segundo turno, Fernando Haddad, disse que Bolsonaro era “tudo o que precisa ser varrido da face da Terra”. Grosso modo, essa é a política tal como a concebia o teórico alemão Carl Schmitt, que deu estofo jurídico ao nazismo mas ganhou uma inaudita respeitabilidade, à esquerda e à direita, no pós-guerra. Schmitt argumentava que um grupo ou partido só ganha coesão em face de um “inimigo” que simbolize “o diferente, o estranho”.
A polarização acentuou-se neste ano, mas vem de longe. Ainda que tivesse talento para conciliações e acomodações improváveis com antigos adversários, Lula, no palanque, era um schmittiano intuitivo. De sua primeira candidatura presidencial, em 1989, ao discurso que fez em São Bernardo antes de ser levado para a prisão em Curitiba, em abril, repisou sempre a retórica do “nós contra eles” — “nós” seria o povo, que o PT e seu líder representariam; “eles”, as elites econômicas interessadas apenas em manter seus privilégios. A Lava-Jato, devassando as associações espúrias do partido com grandes empreiteiras, minou a credibilidade desse discurso. O antipetismo resultante da exposição dos intestinos corruptos de Brasília conduziu o eleitor a Bolsonaro — um deputado do baixo clero que aprovou apenas dois projetos em quase trinta anos de legislatura no Congresso, mas sempre foi feroz na crítica à esquerda em geral e ao PT em particular. Para se apresentar como o candidato antissistema que não recairia em alianças fisiológicas, ele elevou o tom da polarização. Entre os alvos de suas diatribes estavam a imprensa, ONGs, ambientalistas, feministas e toda sorte de defensores de minorias.
Durante um evento de campanha em Juiz de Fora, Bolsonaro foi vítima de um atentado, em 6 de setembro, a um mês do primeiro turno. Embora o ex-garçom Adelio Bispo, que esfaqueou o então candidato, tivesse um passado na esquerda, a polícia não conseguiu rastrear nenhuma articulação ou motivação política na tentativa de assassinato. Adelio Bispo, ao que tudo indica, é um desequilibrado que agiu sozinho. No tribunal da internet, porém, decretou-se que ele estaria ligado ao PT, ao PSOL, ao PCC, ou até ao Hezbollah. O próprio Bolsonaro, sem ter evidência alguma, disse que foi um atentado político. Convalescendo das cirurgias, o candidato do PSL fez a maior parte da campanha em transmissões pelas redes sociais, consagrando um estilo cuidadosamente amador em suas lives em vídeo — a bandeira brasileira torta na parede tornou-se um símbolo.
Não houve espaço para o outro polo. O PT, que até então dominava o jogo da vilanização do adversário, perdeu o rumo: sustentando até o limite a ficção de que Lula era perseguido pelas elites, o partido insistiu em sua candidatura, mesmo estando ele preso em Curitiba, tendo sido condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro e, portanto, barrado pela Lei da Ficha Limpa. Quando afinal Haddad foi ungido como candidato, a esperada transferência dos votos deu impulso extraordinário à sua candidatura, mas não foi o suficiente. A maior humilhação eleitoral recaiu sobre os candidatos do centro. Geraldo Alckmin amealhou menos votos na eleição nacional deste ano do que em 2014, quando se reelegeu governador de São Paulo. Diante de um espectro político carente de nuances, houve pouco espaço para a moderação. Em entrevista a VEJA, publicada neste mês, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso avaliou que, quando há polarização, o medo tende a prevalecer sobre a razão. “As pessoas que querem ser razoáveis, como é meu caso, ficam sem espaço. Uns dizem ‘Eu sou o bem e quero extirpar o mal’. E, quando você diz ‘Cuidado, o bem e o mal são relativos, é preciso conviver’, você fala sozinho”. Não foi, no entanto, apenas o acirramento dos ânimos que soterrou o PSDB na campanha nacional: escândalos envolvendo tucanos graduados — Aécio Neves, sobretudo — ajudaram a validar a pregação moralizante de Bolsonaro.
Em um embate tão fortemente ideologizado, as divisões mais ferrenhas não se deram em torno de problemas fulcrais como a sempre adiada reforma da Previdência. Gênero e doutrinação nas escolas, temas menores, viraram obsessão. E a batalha foi intensa no campo da cultura. Que o diga o roqueiro inglês Roger Waters, que projetou o slogan “ele não” em seus shows no Brasil e ouviu vaias de bolsonaristas. O ex-Pink Floyd, pelo menos, entrou na arena por convicção: é uma criatura dos anos 60, sempre em busca de uma causa para defender. Mas até o humorista “isentão” Marcelo Adnet, cujas imitações satirizaram ecumenicamente todos os candidatos, alcançando mais de 20 milhões de visualizações na internet, foi atacado pelos espectadores mais engajados — sobretudo por partidários de Bolsonaro. A mentalidade polarizada não admite humor.
O discurso extremado consagrou não só Bolsonaro, mas também, entre outros, os governadores de Minas Gerais e Rio de Janeiro, Romeu Zema e Wilson Witzel. Em seu primeiro discurso depois de anunciado o resultado do pleito, em 28 de outubro, o futuro presidente mostrou-se mais conciliador. Prometeu governar para todos. Para Geraldo Tadeu Monteiro, cientista político e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, caso Bolsonaro não cumpra essa promessa, a tendência moderadora ficará a cargo do Congresso. “Ninguém lá negocia em cima de princípios”, diz. “Se você vem com uma forte linha ideológica, o Congresso se encarrega de diminuir esse ímpeto.” Resta saber se Bolsonaro, instalado na cadeira presidencial, estará imbuído da gravidade e da dignidade exigidas pelo cargo ou manterá o discurso beligerante e insultuoso, inflamando seus seguidores pelos canais diretos das redes sociais. O segundo caminho não será saudável para a democracia brasileira.
Publicado em VEJA de 26 de dezembro de 2018, edição nº 2614