Em dezembro passado, uma novidade animou o entorno do presidente da República, que, como se sabe, não costuma ter compromisso com a realidade e adora uma fake news: um instituto de pesquisa mostrou Jair Bolsonaro (PL) à frente de Lula (PT) na corrida ao Palácio do Planalto. No levantamento, realizado pela Brasmarket Inteligência em Pesquisa, o ex-capitão aparecia com 34,8% de intenções de voto no primeiro turno, à frente de seu principal rival, com 19%. Na simulação de segundo turno, Bolsonaro também venceria por 43,4% a 32,9%. Até na Região Nordeste, tradicional reduto petista e onde Bolsonaro enfrenta rejeição recorde, Lula estaria com uma desvantagem de mais de 10 pontos porcentuais em relação ao ex-capitão. Esses números logo foram usados numa ofensiva de contrainformação — a fim de contestar os resultados de outros institutos que apontam o favoritismo do ex-presidente — e repassados a grupos de mensagens, redes sociais e sites bolsonaristas. O objetivo era manter a tropa aliada a Bolsonaro mobilizada e confiante nas chances de reeleição.
Após receber o material da Brasmarket, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) deixou claro em entrevista a VEJA, sem citar o nome da empresa, que a família presidencial só acredita, por enquanto, nessa sondagem. “Temos pesquisas internas que mostram que o ex-presidiário não atinge sequer 30% das intenções de voto no Nordeste”, declarou o Zero Um. Ele também desqualificou as demais pesquisas, que convergem para a liderança de Lula e para a reprovação de cerca de metade da população ao governo Bolsonaro. “São totalmente furadas e feitas pelos mesmos institutos que em 2018 diziam que Bolsonaro perdia para todo mundo. Hoje é o mesmo cenário. Bolsonaro continua indo para a rua e sendo bem recebido, ao contrário de seus adversários”, acrescentou. No início deste ano, uma nova safra de pesquisas foi divulgada. Registradas no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), elas ratificaram o favoritismo de Lula e a alta rejeição à gestão Bolsonaro e, indiretamente, ressaltaram a peculiaridade do resultado colhido em dezembro pela Brasmarket (veja o quadro).
Curiosamente, a companhia não é filiada à Associação Brasileira das Empresas de Pesquisas (Abep) nem fez levantamentos nas últimas campanhas eleitorais, conforme os registros do TSE. Além do histórico recente, a singularidade de seus números também chamou a atenção do mercado. “Há muitas pesquisas sendo divulgadas e todas, independentemente de serem ou não associadas à Abep, têm apontado a mesma tendência”, disse a vice-presidente da Abep e CEO do Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), Márcia Cavallari. “Achei que essa empresa já estivesse fechada. Era bem ativa nos anos 80 e depois sumiu.” Num primeiro contato, até o advogado da Brasmarket, Everson Tobaruela, mostrou-se surpreso com a realização da pesquisa, já que, para ele, a empresa estava inativa há vários anos. Num segundo contato, Tobaruela informou que a dona da Brasmarket vendeu franquias em alguns estados — e que o comprador de algumas delas, o publicitário José Carlos Cademartori, fez o levantamento.
A VEJA, Cademartori declarou que ninguém encomendou a pesquisa e que não sabe como ela foi parar nas mãos de pessoas próximas ao presidente. “Não conheço o Bolsonaro e não tenho vínculo com grupos políticos. A pesquisa não tem nada de manipulação nem de tendenciosa”, afirmou. Ele alegou ainda que num passado distante a Brasmarket apresentou resultados destoantes de institutos renomados, mas, ao fim da apuração, acertou o resultado. Citou dois exemplos regionais, um deles na década de 90.
Nos bastidores, é recorrente entre políticos a versão de que institutos trabalham as margens de suas pesquisas para atender ao gosto do freguês — e que as diferenças entre os resultados vão diminuindo quanto mais próximo fica a votação. Os representantes do setor negam tal prática, que ocorreria em casos isolados, justamente entre as empresas com menor visibilidade. A Brasmarket, por exemplo, já foi acusada desse tipo de fraude. Em 2000, um prefeito publicou um anúncio em jornais acusando o instituto de pedir dinheiro para a divulgação de uma sondagem que o mostraria como o administrador mais popular da Grande Vitória. Cademartori nega qualquer tipo de manipulação na pesquisa de dezembro, inclusive no caso do Nordeste. “O Lula já não está tão bem assim lá.”
Por se tratar de um ano eleitoral, as empresas que realizarem pesquisas em 2022 estão obrigadas a registrá-las no TSE e a informar dados específicos, como quem pagou por elas, o valor desembolsado e a origem dos recursos. A divulgação sem registro é punida com multa, e as sondagens fraudulentas são consideradas crimes, com pena de seis meses a um ano de prisão. Desde 1º de janeiro, já foram formalizadas mais de vinte pesquisas no tribunal. Nenhuma delas é da Brasmarket. Diante das imposições legais, Cademartori afirmou que pretende fazer novas pesquisas se e quando, entre outras coisas, encontrar uma fonte “idônea” para bancá-las. Melhor assim. Não seria bom para o país uma suposta pesquisa, de qualquer instituto enrolado, contestar o resultado das urnas em outubro e incendiar militantes do lado derrotado.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774