A ex-assessora que confirmou “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro
Em depoimento ao MP, Luiza Souza Paes é a primeira do grupo do Zero Um a assumir a prática de desvio de dinheiro público
Distante uns 20 quilômetros do pomposo palácio que abriga a Assembleia Legislativa do Rio, a Rua Felizardo Gomes seria um endereço do subúrbio da capital como outro qualquer. Localizado no bairro de Oswaldo Cruz, famoso por abrigar a escola de samba Portela, o logradouro não tem prédios nem grande fluxo de carros. Em dia de expediente, o silêncio é rompido pela cantoria dos pássaros, cenário que muda aos fins de semana e feriados, com as risadas das crianças correndo ou o som do pagode dos churrascos. Uma das moradoras do pedaço é a estatística Luiza Souza Paes, 30 anos, ex-assessora de Flávio Bolsonaro nos tempos em que o Zero Um era deputado estadual. Ela foi uma das dezessete pessoas denunciadas pelo Ministério Público à Justiça na última terça, 3, no caso das “rachadinhas”. Em depoimento obtido pelo jornal O Globo, Luiza contou que devolvia 90% do que recebia. De 2011 a 2017, recebeu 204 400 reais em salários e repassou 155 700 reais a Fabrício Queiroz, o fiel escudeiro de Flávio Bolsonaro. Para comprovar, municiou os promotores de extratos bancários. Ela foi a primeira pessoa a assumir a prática dentro do gabinete.
A denúncia do MP é encabeçada pelo hoje senador Flávio Bolsonaro (Republicanos) e por Queiroz, assessor entre 2007 e 2018 e apontado como operador da rachadinha. Os dois tragaram para o esquema as esposas, Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro e Márcia Oliveira de Aguiar, ambas acusadas também. As filhas de Queiroz, Nathália e Evelyn, e parentes do miliciano Adriano da Nóbrega, morto neste ano, são outros que podem virar réus na investigação que apura crimes de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.
Em seu depoimento, que é considerado peça importante na acusação do MP, a ex-assessora Luiza confirmou o que os promotores já sabiam: nunca atuou como funcionária de Flávio. Embora tenha alegado não saber de início a respeito do esquema, ela conhecia bem o ex-assessor — desde que era criança. Os dois foram vizinhos na Rua Felizardo Gomes, onde mora até hoje. Lá, todo mundo conhece todo mundo. E todo mundo conhece Queiroz, que começou a fincar ali as raízes no Rio, quando veio de Belo Horizonte para entrar no Exército nos anos 80. Na época, conheceu um Jair Bolsonaro que nem de longe sonhava em ser presidente e um amigo de quartel que o abrigou em sua casa no logradouro. Foi onde Queiroz encontrou a primeira mulher, Débora Melo, mãe de Nathália e Evelyn. A família viveu nessa rua por anos. De certa forma, a trajetória da rachadinha começou ali — cinco moradores ou ex-moradores foram denunciados.
Na rua, Queiroz fez amizade com Fausto Antunes Paes, pai de Luiza. Em 2002, quando já havia se mudado para Jacarepaguá, fundou com seus parceiros de Oswaldo Cruz o time de futebol “Fala tu que eu tô cansado”. Fausto virou o presidente. Flávio e até Jair Bolsonaro participaram das peladas de domingo. O pai de Luiza apareceu tangencialmente na investigação, quando tentou encobrir as irregularidades em que a filha e o amigo estavam envolvidos. Amauri dos Anjos, o amigo que deu abrigo a Queiroz, é marido de Sheila Vasconcellos, também empregada por Flávio e outra moradora da rua denunciada. E é quem Luiza compromete ao confirmar que a vizinha também foi nomeada sem trabalhar. Segundo o MP, Sheila repassou 117 300 reais de sua remuneração às contas de Queiroz. Na rua, aliás, impera a lei do silêncio. Basta pronunciar o nome de Queiroz ou a palavra rachadinha que os passos por lá são acelerados e as janelas e portas, fechadas.
Em depoimento, Flávio disse que cabia a Queiroz supervisionar o trabalho de assessores como Luiza e Sheila, que faziam “trabalho de rua” e levavam demandas da população. Contou que foi graças a uma reivindicação trazida por Sheila que conseguiu, “junto à prefeitura, reformar a Pracinha de Oswaldo Cruz”. Se o parlamentar pareceu nunca ter estado próximo das ex-assessoras quando eram empregadas em seu gabinete, poderá agora estar ao lado delas no banco dos réus. O próximo capítulo da saga depende da Justiça.
Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712