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A crise tem pai e filho

Carlos, o segundo rebento do presidente, insulta um ministro publicamente. Bolsonaro concorda — e, juntos, eles criam o mais insólito salseiro palaciano

Por Marcela Mattos e Nonato Viegas
Atualizado em 4 jun 2024, 15h53 - Publicado em 15 fev 2019, 07h00
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  • A crise tem pai e filho
    AGRESSÃO – O pai, o filho e o tuíte da mentira: crise sobe a rampa do Palácio do Planalto (Baptistão - Twitter/Reprodução)

    A figura política mais surpreendente do governo de Jair Bolsonaro não faz parte do governo de Jair Bolsonaro. Seu filho Carlos tornou-se conhecido pelos brasileiros quando se sentou no banco de trás do Rolls-Royce que desfilou com o presidente e a primeira-dama no dia da posse, em Brasília. Aboletado no encosto, com os pés nos bancos de couro, Carlos Bolsonaro não deu um sorriso e manteve-­se atento o tempo todo. Sua missão, que ele próprio se atribuiu devido a um “mau pressentimento”, era ficar alerta para um atentado contra o pai. Sua presença ali, quebrando o protocolo das posses, emitiu um sinal: sua influência junto ao pai não se limitaria aos laços familiares. Na semana passada, no curso da mais bizarra das crises políticas, Carlos Bolsonaro, 36 anos, vereador no Rio de Janeiro e sem nenhum cargo no governo federal, mostrou todo o esplendor de sua ascendência sobre o pai — e detonou publicamente Gustavo Bebianno, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência e um dos primeiros a embarcar na candidatura presidencial de Bolsonaro, quando nem o candidato acreditava muito nas suas chances de sucesso.

    Gustavo Bebbiano
    O PERSONAGEM – Bebianno: indignado com a violência e o abandono (Cristiano Mariz/VEJA)

    O ponto de ebulição da crise começou na quarta-feira 13, quando Carlos postou um tuíte no qual dizia que o ministro Bebianno, ao contrário do que afirmara, não tinha conversado com seu pai, que ainda convalescia no Hospital Albert Einstein. “Ontem estive 24 horas do dia ao lado do meu pai e afirmo: É uma mentira absoluta de Gustavo Bebbiano (sic) que ontem teria falado 3 vezes com Jair Bolsonaro”. Em seguida, postou um áudio em que se ouve Bolsonaro dizendo o seguinte para Bebianno: “Ô Gustavo, está complicado eu conversar ainda. Então, não vou falar, não vou falar com ninguém, a não ser estritamente o essencial. Estou em fase final de exames para possível baixa hoje, tá ok? Boa sorte aí”. A ofensiva de Carlos, com tuíte e áudio, era para desmentir uma declaração de Bebianno publicada no dia anterior pelo jornal O Globo. Numa tentativa de esfriar uma crise nascida de uma denúncia, Bebianno dissera ao jornal que vinha tendo contatos normais com o presidente. “Não existe crise nenhuma. Só hoje falei três vezes com o presidente.” Em qualquer lugar do mundo, quando o filho de um presidente chama um ministro de mentiroso em público, entra-se na contagem regressiva para a explosão.

    Bebianno chegou a esclarecer que as conversas com o presidente se deram através de mensagens de áudio do WhatsApp — e não por telefone, como talvez tenha imaginado o filho Carlos. Não resolveu. Carlos não se desculpou pela acusação e, na noite de quarta, em entrevista à TV Record, o próprio presidente recarregou a artilharia contra o ministro, sustentando que não falara com ele. A entrevista eliminou as suspeitas de que Carlos pudesse estar criando um salseiro no governo por conta própria, devido à sua personalidade um tanto beligerante e algo descontrolada. A declaração do presidente deixou claro que pai e filho agiam em conjunto contra Bebianno.

    Hamilton Mourão
    MAQUINADOR – O vice Mourão e o tuíte da suspeita: conspiração por toda parte (Wilton Junior/Estadão Conteúdo)
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    A origem da crise estava nas páginas do jornal Folha de S.Paulo, que noticiou que a direção nacional do PSL no ano passado, então sob o comando de Bebianno, destinou 400 000 reais do fundo eleitoral a uma candidata em Pernambuco que, apuradas as urnas, teve apenas 274 votos. A discrepância entre o enorme volume de dinheiro — a terceira maior verba do PSL em todo o Brasil — e a minguada votação sugeria que a candidata fora usada como laranja. A Folha descobriu que 95% dos 400 000 reais foram repassados a uma gráfica que não existe. Bebianno disse que a executiva nacional libera o dinheiro do fundo, mas é o diretório estadual que define quem vai receber a verba — no caso, o diretório de Pernambuco. Atual presidente do PSL, além de oriundo de Pernambuco, Luciano Bivar, cujo amigo presidia o diretório do PSL no estado, confirmou a versão de Bebianno. Com isso, a crise tinha tudo para se manter longe do Palácio do Planalto, até Carlos puxá-la pela rampa e colocá-la no colo do presidente.

    Se houve uma conversa — por telefone, por escrito ou por áudio de WhatsApp —, é mais ou menos irrelevante. Mas o filho e, depois, o presidente parecem ter feito questão de transformar o copo d’água em tempestade. Tanto que há outro ministro sob suspeita de usar laranjas para desviar verbas do fundo eleitoral do PSL. É o da pasta do Turismo, Marcelo Álvaro, cujo diretório em Minas Gerais destinou 279 000 reais a quatro candidatas que, juntas, alcançaram pouco mais de 2 000 votos. Segundo a Folha, pelo menos 85 000 reais foram gastos com empresas de assessores, parentes e sócios do ministro. Apesar de tudo isso, até o fechamento desta edição, na noite da quinta-feira 14, o ministro estava intocado em seu cargo, sem envolvimento com nenhuma polêmica e sem irritar o presidente e seu filho. Sinal de que o incômodo não é exatamente o laranjal do PSL. É Bebianno.

    Julian Lemos
    CANELADA – Julian Lemos e o tuíte da acusação: provocando um apoiador (Cristiano Mariz/VEJA)

    O desfecho da crise poderá ser devastador. Afinal, dos 22 ministros, certamente não há quem tenha compartilhado mais a intimidade do presidente Bolsonaro nos últimos tempos do que Bebianno. Na campanha, ele foi o assessor número 1, uma espécie de faz-tudo do candidato. Planejava a infraestrutura, definia estratégias, cuidava da parte financeira, aparava arestas, decidia quem podia e quem não podia falar com o presidenciável. Antes disso, como advogado, ganhou a confiança do então deputado Jair Bolsonaro ao se oferecer para defendê-lo de graça de uma acusação de homofobia. Bebianno estava sempre tão próximo ao candidato que, por causa do seu avantajado porte físico, não raro era confundido com um segurança. Faixa-preta de jiu-jítsu, é chamado de “cão de guarda”. O apelido nunca o incomodou. No governo, ganhou o cargo de secretário-geral da Presidência, o que lhe dá o valoroso status de trabalhar dentro do Palácio do Planalto, perto do presidente. Apanhado no centro do furacão, ele tem dito que não entende a violência com que vem sendo atacado e a facilidade com que foi abandonado pelo presidente. Garante que não vai pedir demissão. Quer que o presidente o demita, face a face, explicitando os motivos.

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    André Marinho
    ARESTA – André Marinho e o tuíte do ciúme: tradutor de Bolsonaro (//Reprodução)

    O vereador Carlos Bolsonaro, o zero dois do presidente, nunca nutriu admiração por Bebianno. Desde o fim da eleição, ele trabalhou nos bastidores para minar o poder do advogado junto ao pai. Pessoas próximas à família asseguram que o ciúme está na raiz da disputa. O presidente sempre disse que Carlos era o “pitbull” do clã, o filho que está sempre ao seu lado para protegê-lo. As rusgas começaram na campanha. Bebianno tinha carta branca de Bolsonaro para tomar as decisões mais delicadas. Carlos, que sempre tinha um palpite a dar sobre tudo, era tratado com certo desdém. Quem mandava era o “cão de guarda”. A turma ligada a Bebianno espalha, com uma dose de maldade, que Carlos, por causa do papel secundário, se limitou a cuidar das redes sociais da família, e, na maior parte do tempo, ficava sentado junto do pai, armado com revólver e segurando no colo Pituka, uma poodle. Vencida a eleição, apesar da resistência de alguns militares que chegaram a vetar sua participação em reuniões, Bebianno assumiu o posto no palácio, e Carlos, que pleiteava comandar a Secretaria de Comunicação, ficou sem cargo no governo e culpou Bebianno — até que, na semana passada, viu a chance para dar o troco no desafeto.

    Carlos tem uma personalidade cheia de arestas. Já mostrou os dentes ao vice-­presidente Hamilton Mourão, insinuando em um tuíte que o vice estaria interessado na morte do seu pai. Já atacou a imprensa, amigos do presidente, assessores (veja exemplos de tuítes nestas páginas) e vive mergulhado num universo de teorias conspiratórias. Sua relação com Bolsonaro é umbilical e, por vezes, obsessiva. Segundo pessoas próximas à família, há um histórico importante. Em 2000, Bolsonaro determinou que um dos filhos concorresse a uma vaga na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A proposta escondia um ardil: o deputado queria evitar que Rogéria Nantes, de quem havia se separado, conseguisse a reeleição. A vaga foi oferecida ao primogênito, Flávio, mas ele se sentiu desconfortável com a situação espinhosa de disputar com a mãe. Carlos se ofereceu para a missão. Em 2000, aos 17 anos, desbancou a mãe e tornou-se o vereador mais jovem do Rio. Sua relação com o pai, no entanto, deteriorou-se quando Bolsonaro assumiu o relacionamento com a segunda mulher. Carlos se sentiu usado pelo pai. Ficaram sem se falar por anos. Para reconquistar o filho, Bolsonaro acabou se tornando mais leniente com os caprichos de Carlos.

    Reunião do Conselho de Governo
    SERENIDADE – A cúpula do governo Bolsonaro reunida: os militares torcem para que se equilibre a relação pai e filho (Alan Santos/PR)
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    Na Câmara Municipal do Rio, Carlos ocupa o gabinete 905, onde exibe objetos do pai presidente: diplomas da Academia das Agulhas Negras, medalhas militares e quadros que retratam Bolsonaro. A admiração ao presidente também está à mostra no braço direito de Carlos — uma tatuagem com o rosto do pai. Até meados de 2018, Bolsonaro passava pelo menos uma vez por semana pelo gabinete de Carlos, que funcionou como ponto de encontro da campanha presidencial. Eleito pelo PSC, partido ao qual continua filiado, Carlos tirou três meses de licença não remunerada durante a campanha do pai. Ao reassumir seu mandato, em novembro de 2018, assinou um projeto que pretende transformar a família Gracie, lutadores de jiu-jítsu pelos quais nutre grande admiração, em patrimônio imaterial do Rio. Neste ano, a Câmara Municipal realizou apenas uma sessão, em 2 de janeiro, para eleger o presidente da Casa. Ocupado em Brasília, Carlos não compareceu. Nesta sexta, 15, os vereadores encerraram o recesso e voltam ao batente. Ninguém sabe se Carlos deixará o palácio em Brasília para cumprir o mandato de vereador no Rio.

    Os militares, sobretudo os militares, torcem para que isso aconteça, pois estão assustados com a quebra de hierarquia: em vez de o pai influenciar o filho, ocorre o contrário. Para eles, a relação entre Bolsonaro e Carlos tem gerado mais problema do que solução — e o general Augusto Heleno foi escalado para conversar sobre o assunto com o presidente. Com o risco de ficar distante de Brasília, Carlos já deu um jeito de infiltrar um primo no Planalto para acompanhar os passos do presidente de perto e lhe contar tim-tim por tim-tim, inclusive se o pai está seguindo à risca a dieta recomendada pelos médicos. Consultados por VEJA, assessores de Bolsonaro confirmam que, não raro, encontram Carlos dentro do gabinete do presidente, acompanhando despachos e audiências. A presença do filho causa incômodo entre ministros, militares e congressistas. Diz um assessor, que pede o anonimato para não cair no poço sem fundo da intriga familiar: “E como é que alguém vai questionar o filho do presidente? Ele é visto como uma eminência parda dentro do Planalto”.

    Leia mais: Uma adolescente no Alvorada

     

    Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622

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