A conta e o faz de conta das eleições
Com o fim do financiamento privado e o cerco ao caixa 2 pela Lava Jato, políticos correm contra o tempo para saber quem vai pagar as campanhas de 2018
Em 17 de setembro de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por oito votos a três, dar um ponto final a uma situação que vigorava há 22 anos no país – a autorização legal para doações empresariais às campanhas políticas. A medida tinha um caráter moralizador: dar uma resposta ao país que começava a entender a dimensão do esquema de corrupção envolvendo empreiteiras e políticos, investigado pela Operação Lava Jato. No entanto, a decisão do STF criou um novo problema para o sistema político brasileiro. Afinal, como financiar as cada vez mais caras campanhas da democracia?
A interpretação da Corte era que a participação das pessoas jurídicas privadas representava um mecanismo para o abuso de poder econômico por parte dos candidatos que, por algum motivo – lícito ou não –, despertavam a generosidade das empresas brasileiras. Em 2014, a campanha à reeleição da então presidente Dilma Rousseff (PT) consumiu 350,2 milhões de reais, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para efeito de comparação, a cifra – que só diz respeito ao “caixa 1”, os valores declarados à Justiça – é superior à soma do que gastaram todos os nove candidatos que disputaram o Planalto quatro anos antes.
A história do financiamento de campanha no país é genérica e errática, com longos períodos definidos por regras que diziam pouco ou nada sobre como partidos e candidatos deveriam custear seus gastos. Agora, este é um dos principais tópicos em discussão na chamada Reforma Política. De acordo com o relatório apresentado pelo deputado federal Vicente Cândido (PT-SP), o Congresso pode criar o Fundo de Financiamento da Democracia (FFD), um caixa móvel abastecido com dinheiro público. Partindo de 2,1 bilhões de reais para as eleições de 2018, o FFD assumiria 70% das contas de campanha, com os outros 30% ficando por conta das colaborações de pessoas físicas.
Qualquer nova legislação precisa ser aprovada até o começo de outubro. Do contrário, não valerá para o próximo pleito e os candidatos passarão por um problema do qual se queixou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Ele defendeu a aprovação da proposta de Cândido, já que sem doações empresariais e sem uma “cultura” de doação das pessoas físicas, as campanhas ficam sem recursos. A solução, nada novo em Brasília, seria passar a conta para a União. ”A democracia tem um custo”, alegou o parlamentar.
Apesar de ser difícil convencer os brasileiros a arcar com mais um custo, o modelo proposto não seria uma invenção do país. Na verdade, é muito semelhante ao de Portugal, onde esse esquema já existe com a proporção de 80%, segundo um estudo de 2016 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O restante, assim como na proposta do parlamentar petista, é de doações de pessoas físicas limitadas a um determinado valor.
Histórico
A primeira legislação eleitoral no país data de 1890. Naquele ano, logo depois da Proclamação da República, o presidente Deodoro da Fonseca publicou o Decreto 200-A, que estabelecia quem poderia ser eleitor no país. A saber, apenas homens, de mais de 21 anos e alfabetizados – segundo o levantamento do pesquisador Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), 65% da população brasileira não sabia ler nem escrever na época.
O restrito colégio eleitoral é uma das explicações do por que, portanto, nem se falava em financiamento de campanha, tampouco havia qualquer lei que tratasse do tema. A situação começou a mudar a partir de 1932, quando surgiu o 1º Código Eleitoral, durante o governo de Getúlio Vargas. O documento criou a Justiça Eleitoral e expandiu a base de votantes, ao permitir o voto feminino.
A primeira menção às contas eleitorais na literatura jurídica brasileira veio dezoito anos depois, em 1950, com o 2º Código Eleitoral. No capítulo V, o novo regramento estabeleceu que cabia aos partidos fixar e limitar as contribuições de seus filiados, bem como a quantidade gasta por seus candidatos. O código estabelecia que as legendas passassem a prestar contas e proibiu doações em dinheiro estrangeiro e de empresas que mantivessem contratos com o poder público.
Com essas regras, foram disputadas duas eleições para a Presidência da República: em 1955 e 1960, quando foram escolhidos respectivamente Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros. Em 1965, um ano após a queda de João Goulart, que sucedera Jânio após a renúncia, o governo militar decretou a norma que ficou conhecida como Lei dos Partidos Políticos. Manobra jurídica que expandiu o controle público sobre as legendas, a lei criou o Fundo Partidário e proibiu expressamente o financiamento empresarial
Caixa 2
Segundo Daniel Falcão, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), o período que se seguiu à proibição do financiamento empresarial foi o de naturalização das doações não declaradas, o chamado caixa 2. A questão, segundo ele, são os processos de fiscalização, que estariam fadados a não dar resultados. “Se o sistema é público, privado ou misto, na verdade, isso não importa se o controle é ruim”, explica.
As investigações contra o presidente Fernando Collor em 1992, que resultaram no impeachment, foram baseadas em um esquema de financiamento ilegal comandado por Paulo César Farias, o ex-tesoureiro da campanha de 1989. Na época, Collor declarou que os recursos suspeitos não se tratavam de propina, mas sim de caixa 2. O argumento não convenceu a opinião pública e o Congresso, que o retiraram do cargo, apesar de ele ter sido inocentado no STF por falta de provas em 2014.
Se o sistema é público, privado ou misto, na verdade, isso não importa, se o controle for ruim
Daniel Falcão, advogado e professor do Instituto Brasileiro de Direito Público (IDP)
De acordo com Falcão, foi esse o caso que deu o “start” para a revisão das regras. “Depois do escândalo do Collor, quando ele alegou que aquele dinheiro encontrado era financiamento irregular de campanha, resolveu-se mudar e prever o financiamento privado”. Paralelamente às leis gerais que regem o sistema político, cabia ao Legislativo a aprovação de leis específicas para cada eleição disputada, tratando de itens como prazos de inscrição, convenções, realização e divulgação de pesquisas e propaganda eleitoral. Ao formatar a disputa presidencial de 1994, o Congresso previu, no artigo 38 da lei 8.713, que as contribuições poderiam ser feitas por qualquer pessoa física ou jurídica”.
Essa mudança, que a princípio valeria apenas para o pleito que levou Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ao Planalto, foi confirmada primeiro na nova versão da Lei dos Partidos, em 1995, e depois na Lei Geral das Eleições, de 1997. A partir daquele momento, não caberia mais ao Congresso votar leis específicas por votações, que deveriam seguir a uma nova regra universal.
Mensalão e Lava Jato
Ao final de cada período eleitoral, cabe aos comitês de campanha ou aos próprios candidatos – no caso das disputas proporcionais – prestar contas à Justiça Eleitoral, com seus relatórios de arrecadação e gastos. O tribunal, a partir daí, tem cerca de um mês para avaliar e aprovar ou não as contas. “Não dá tempo, a Justiça Eleitoral faz as análises que consegue. Lembro de uma entrevista do Carlos Velloso [ex-presidente do TSE], na qual ele disse que os candidatos fingem que declaram e o TSE finge que analisa. É isso”, afirmou o professor.
Outro ponto é o curtíssimo prazo de prescrição: só é possível entrar com ações de impugnação de mandato eleitoral até 15 dias após a diplomação do eleito. Depois disso – quando eventuais fraudes têm mais chance de serem descobertas –, só com cassação.
Ou seja, para além do que se debate exaustivamente a respeito de modelos para o sistema brasileiro, tem uma questão mais profunda, que é a do controle. O Mensalão foi outro momento-chave. Em 2006, o Senado aprovou um projeto para baratear as campanhas. “E o que aconteceu?”, questiona Falcão, que completa: “os valores aumentaram, mas não porque estavam gastando mais. O receio fez com que os políticos tirassem um pouco do caixa 2 e pusessem no caixa 1”.
Eleição a eleição, esse processo se repetiu. Em 2010, nove candidatos declararam, ao todo, 266,8 milhões de reais. Em 2014, foram 644,9 milhões, um crescimento de 141,7%. Iniciada em junho daquele ano, a Operação Lava Jato investiga exaustivamente doações irregulares de empreiteiras para campanhas eleitorais em troca de contrapartidas e desvios. Delações premiadas, como a da Odebrecht, indicam um largo sistema de troca de favores pelo financiamento do processo eleitoral. A própria presidente reeleita, Dilma Rousseff (PT), é acusada de ter recebido 150 milhões de reais de caixa 2 do grupo.
A dimensão do esquema revelado acelerou o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade pedida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que resultou no veto decidido pelo STF. Aprovada no mesmo ano, a minirreforma eleitoral bem que tentou emplacar uma nova lei com a proposta de permitir as doações de empresas, mas, ao sancionar o projeto, Dilmavetou a emenda que tratava do assunto.
E agora?
Em 2016, as campanhas eleitorais contaram apenas com os recursos do Fundo Partidário e doações de pessoas físicas. Quatro anos antes, Fernando Haddad (PT) foi eleito prefeito de São Paulo com o maior gasto: 67,9 milhões de reais. No último pleito, a maior arrecadação, do atual prefeito João Doria (PSDB), foi bem menor: 12,3 milhões, apenas de pessoas físicas e fundo partidário. Com um detalhe relevante: a pessoa física que mais contribuiu foi justamente o próprio prefeito, que investiu 4,4 milhões no seu projeto de chegar à prefeitura.
Presidente do TSE, o ministro Gilmar Mendes declarou temer “falta de controle” no caixa 2 em 2018. Definindo a situação brasileira como um “mato sem cachorro”, ele reiterou em março sua preocupação com um combo explosivo: a ausência de uma fonte exclusiva de financiamento de campanhas (seja pública ou privada) e o voto em lista aberta, um sistema considerado caro porque opõe os candidatos ao parlamento aos políticos de outros partidos e aos nomes do seu próprio partido.
Outro a defender o financiamento público, o presidente do PMDB, Romero Jucá (RR), defendeu recentemente a urgência de aprovar novas regras, diante do risco de as candidaturas de 2018 não conseguirem se bancar. A posição, no entanto, não é unanimidade. Outros, como o professor Falcão, lembram que já existe uma fonte pública para custear a política: o Fundo Partidário, orçado atualmente em 820 milhões de reais por ano.
Pelo mundo
No resto do mundo, os sistemas se alternam. O citado estudo da OCDE mostra que no Reino Unido ainda prevalece o modelo com predomínio da verba empresarial, em uma proporção de cerca de 65%, com o restante sendo bancado por algo semelhante a um fundo partidário. Segundo a entidade, apesar de haver desconfiança do público com a contribuição das empresas, prevalece a posição de que o público não está disposto a assumir a conta.
Na França, as campanhas de nomes como Emmanuel Macron e Marine Le Pen, como todas no país, são financiadas majoritariamente por dinheiro público. São permitidas contribuições de pessoas físicas, limitadas a 4,6 mil euros por pessoa. O país proíbe totalmente a doação de empresas, com o objetivo, segundo a OCDE, de diminuir a influência do dinheiro nas campanhas eleitorais.
Exemplos, para quase todos os gostos, não faltam. A briga dos parlamentares brasileiros agora é com o relógio. Se as novas regras não forem aprovadas até um ano antes do pleito do ano que vem, os políticos terão poucas opções. Convencer o brasileiro a doar, por vontade própria ou por força da lei, vai ser tarefa difícil.