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“Sofri preconceito”, diz Eduardo Leite sobre se assumir gay publicamente

Em fato inédito no cenário nacional, o governador do Rio Grande do Sul anuncia a união estável com o companheiro, sabendo que isso pode frear sua trajetória

Por Monica Weinberg Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ricardo Ferraz Atualizado em 4 jun 2024, 09h39 - Publicado em 2 fev 2024, 06h00
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  • Recém-formado na faculdade de direito, Eduardo Leite logo engatou na política como vereador da cidade gaúcha de Pelotas, de onde seria alçado a prefeito e, mais tarde, a governador do Rio Grande do Sul, cadeira que ocupa pela segunda vez. Aos 38 anos, ele se firma como a jovem face do velho PSDB, que presidiu em 2023 e que tenta resgatar do que define como “a pior crise na história do partido”. Ultimamente, Leite vem ganhando os holofotes por um fato de cunho pessoal, inédito no país: primeiro em tão alto escalão a se assumir publicamente homossexual, há dois meses ele anunciou a união estável com o médico Thalis Bolzan, 31 anos, sacudindo as fileiras conservadoras. Nesta entrevista, em que trata dos desafios que se põem aos tucanos nas próximas eleições, o governador reconhece que expor sua orientação sexual pode ser um freio à sua trajetória, mas diz: “A liberdade não tem preço.”

    Por que o senhor e seu marido decidiram selar a união estável? Estamos há três anos juntos, felizes, e resolvemos assinar uma declaração que nos protege do ponto de vista patrimonial. Não foi nada muito planejado nem teve festa, como algumas pessoas chegaram a dizer, ao ver fotos nossas em Trancoso, na Bahia. Mas, sim, pretendemos celebrar mais para a frente. Quando começamos a namorar, eu logo disse ao Thalis que queria trazer nossa história à luz. Naquele tempo, o pai dele ainda não sabia que ele era gay, então pedi que tratasse do assunto em casa e aí contaria às pessoas. Para mim, era essencial. Não queria viver essa história pela metade, em silêncio, como havia feito até então, em outros relacionamentos.

    Pretendem adotar filhos? Queremos, mas não agora. Isso exige uma disponibilidade que tanto eu quanto ele não temos no momento.

    Como o Palácio Piratini se adaptou a essa inédita situação no cenário político brasileiro? Era 2021, e o pessoal do cerimonial me procurou para saber como eu gostaria que apresentassem oficialmente o Thalis. E eu falei: “Façam do mesmo jeito que com as primeiras-damas”. Quando ele me acompanha, seu nome é sempre citado e um lugar fica reservado para ele a meu lado. Tem gente que o chama de primeiro-cavalheiro, mas eu não. Ao tomar posse, fiz um agradecimento enfático a meu marido, como qualquer homem hétero faria à esposa.

    O senhor já sofreu preconceito na vida pública por ter aberto sua orientação sexual? Sem dúvida. Na verdade, sofri ataques até antes. As pessoas especulavam e comentavam. Quando enfim me entendi como gay, não quis expor ao mundo, mas tomei uma decisão: não iria assumir um personagem, tentando convencer os outros de que era heterossexual, aparecendo com mulheres ou fingindo ser casado.

    Quando começou a sentir atração por homens? Na adolescência, me peguei pensando sobre isso, mas não fui fundo no sentimento. Talvez por todo o contexto: fui criado em um ambiente mais conservador, estudei em escola católica, e você cria uma barreira sem se dar conta. Tive bons relacionamentos com mulheres, verdadeiros, e cheguei a ficar quatro anos com uma amiga de faculdade, por quem realmente me apaixonei. Só aos 25 anos o interesse por homens se fez claro para mim e me permiti vivê-lo. Àquela altura, já era vereador.

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    “Quando comecei a namorar o Thalis, decidi me assumir publicamente gay. Para mim, era essencial. Não queria viver essa história pela metade, em silêncio, como fiz outras vezes”

    Foi conflituoso? Você se pergunta como as pessoas vão reagir. Tinha um namorado em São Paulo, vivia viajando e, um dia, minha mãe quis saber por quê. Resolvi revelar ali que estava envolvido com um homem. “Por que então escolheu a vida pública?”, ela me perguntou. Como toda mãe, tinha medo de que eu sofresse.

    Por que demorou uma década para se assumir publicamente gay ? Só me senti seguro depois que já me conheciam por meu trabalho. Na época de prefeito, tive um namorado, com quem fiquei por sete anos, e saía da cidade para encontrá-lo. O preconceito pesa, mas não me impediu de ser reeleito governador do Rio Grande do Sul, estado tido como conservador.

    Que tipo de ataques já sofreu? Aos 27 anos, quando decidi me candidatar à prefeitura, um assessor de meu gabinete avisou que os adversários diziam ter uma foto minha com um homem. Respondi que, mesmo que fosse verdade, não iria ceder à chantagem. A tal fotografia nunca apareceu, mas, nos debates, recebia mensagens anônimas, ameaçando: “Vou divulgá-la.” É curioso que as agressões vêm de onde você menos espera e se fiam em argumentações inacreditáveis.

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    Poderia dar um exemplo? Já ouvi até que eu não seria gay de verdade e que me apresentava assim apenas para ganhar destaque na imprensa.

    Recentemente, o ex-deputado Jean Wyllys o acusou de sofrer de “homofobia internalizada”, depois que o senhor decidiu manter as escolas cívico-­militares em seu estado. Isso o feriu? Foi um ataque claramente homofóbico. Recorri à Justiça, que o obrigou a retirar o post absurdo. O problema não é discordar da medida, mas associar minha decisão a um suposto fetiche por homens de farda. É um desserviço à causa que diz defender. Compreendo que partidos à esquerda se sintam mais conectados à luta, mas alguns chegam ao ponto de achar que alguém como eu, que não milita nestas fileiras, não é merecedor dessa bandeira. Um completo equívoco.

    O avanço do conservadorismo no eleitorado brasileiro não seria um freio para suas ambições, como a de disputar a Presidência? Qual a opção? Não dá para deixar de ser gay e não vou cortar uma parte de mim para atingir qualquer objetivo. A única alternativa possível é estabelecer uma conexão com as pessoas pelos valores que elas defendem e com os quais eu compartilho — o respeito à família entre eles. Mas, claro, sei que minha posição pode ser um obstáculo a uma aspiração futura.

    O senhor vê o Brasil como um país ainda preconceituoso? Sem um olhar histórico, a sensação é de atraso, mas é preciso observar a evolução, e ela está certamente acontecendo. A humanidade é egressa da selva. Uma parcela saiu de lá há mais tempo, outra há menos, e alguns insistem em permanecer por ali. Estamos em meio a um processo civilizatório.

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    No rol da pauta progressista, qual sua posição sobre descriminalização da maconha, em discussão no STF? O debate é mais do que necessário. A proibição pura e simples tem colhido efeito negativo: a droga se faz presente na sociedade para financiar o crime organizado. Agora, é preciso pensar o que legalizar, para quem e de que forma. Ideal seria que a matéria passasse pelo Congresso.

    E o que pensa sobre a descriminalização do aborto, outro tópico candente sob apreciação do Supremo? Neste ponto, me alinho ao ministro Luís Roberto Barroso. Não sou pessoalmente favorável ao aborto, mas não acredito que deixar de tratar a mulher como uma criminosa vá incentivar a interrupção da gravidez, como se argumenta. Esses assuntos, porém, mexem com convicções muito profundas das pessoas e nenhuma autoridade tem o direito de determinar o que deve ser feito baseada nos próprios princípios. Por isso, defendo um plebiscito.

    Como salvar o PSDB em uma arena tão polarizada como a atual? A polarização sempre existiu, mas nunca com feições tão nocivas. Um polo fica o tempo todo querendo aniquilar o outro, num ciclo de destruição que o próprio Lula estimula. O centro do espectro, onde está o PSDB, precisa trabalhar para se converter em um terceiro núcleo de gravidade. Não é fácil. Reconheço que o partido vive a pior crise de sua história.

    O racha em São Paulo em relação às eleições municipais pode afundar ainda mais o partido? Foi um erro não termos lançado um nome à Presidência em 2022, e espero não repetirmos o mesmo equívoco. Ganhando ou perdendo, precisamos de um palanque para ventilar ideias e apresentar nosso projeto. Certas lideranças desejam simplesmente aderir ao prefeito Ricardo Nunes (MDB), chapa cujo vice será indicado por Jair Bolsonaro. Sou contra e já penso em quadros possíveis para a prefeitura, como Andrea Matarazzo, liderança histórica do PSDB, hoje no PSD.

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    O senhor teme uma revoada no ninho paulista? Diante dessas divergências, pode ser que aconteça. Aí vamos buscar outros nomes e tentar unir forças. Tenho convicção de que há chances de o partido recuperar o protagonismo do passado.

    Restaram mágoas de seu embate com o ex-governador de São Paulo João Doria, com quem disputou internamente a vaga de candidato à Presidência? Não tenho nenhuma mágoa do João. Naquele momento, entendi que precisava me apresentar para o páreo, já que ele acumulava alta rejeição e eu representava o novo.

    “Do ponto de vista institucional, o diálogo avançou em relação à hostilidade de antes. Mas Lula também fomenta a divisão, o que é um desserviço. O país precisa curar suas feridas”

    Não faz muito tempo, tucanos paulistas ligados a Doria procuraram o presidente do partido, Marconi Perillo, dizendo que o senhor promoveu perseguições contra eles em sua gestão à frente da sigla. Procede? De jeito nenhum.

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    Qual avaliação o senhor faz do governo Lula? Do ponto de vista institucional, o diálogo avançou. O que havia antes era hostilidade a todos que pensavam de forma diferente de Bolsonaro. Vejo mais respeito agora, embora Lula também fomente a divisão. Considero um erro e um desserviço ao país, porque a gente precisa curar as feridas, e não cutucá-las.

    E a agenda do governo, vai na direção certa? Acho a agenda velha. Ela recicla programas antigos, especialmente na área econômica, em pontos centrais como privatização, tamanho do Estado e legislação trabalhista. Eu defendo uma economia mais liberal, com reformas que garantam o equilíbrio fiscal sem abrir mão de um Estado indutor de inclusão social.

    O senhor acha que escândalos como o da Abin, que teria mantido uma estrutura paralela para municiar de informações o clã Bolsonaro, abalam decisivamente a força política que representa? É preciso sempre lembrar que o bolsonarismo é muito maior do que a família Bolsonaro. Ele despontou como uma resposta a um acúmulo de frustrações da população. Desse caldo é que emergiu um forte sentimento antipolítica, que resiste na sociedade. É interessante observar como tanto Bolsonaro como Lula reagem sempre da mesma maneira quando confrontados: ambos se vitimizam e insistem na tecla da perseguição.

    Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878

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