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“Piada não tem partido”, diz comediante Antonio Tabet

O roteirista e ator fala de excessos do politicamente correto e, em meio à mesmice de Brasília, aposta no 'show de horrores' das eleições para fazer rir

Por Sofia Cerqueira Atualizado em 29 ago 2024, 10h12 - Publicado em 23 ago 2024, 06h00
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  • Integrante de uma turma que renovou o humor nacional, o publicitário, roteirista e ator Antonio Tabet, 50 anos, alcançou uma proeza em um país cindido pela polarização: arrebanhou público à direita e à esquerda com o hoje famoso sargento-tenente-­major Peçanha. Criado há mais de uma década, nos tempos do Kibe Loco, site que marcou a estreia solo de Tabet no rol dos comediantes, e consagrado no Porta dos Fundos, canal do qual é sócio-­fundador, ao lado de Gregório Duvivier e Fábio Porchat, seu caricato policial tem os pés fincados na corrupção e é um poço de dicotomias. “A contradição em pessoa”, resume. Às vésperas de subir ao palco na pele de sua criatura preferencial, o carioca de Botafogo, que já fez da condição de flamenguista um ofício — ele foi vice-­presidente de comunicação do clube —, recebeu VEJA em seu apartamento, de frente para o mar de Copacabana, onde refletiu sobre o humor na era da internet, cutucou o vespeiro da patrulha politicamente correta e avaliou que Brasília não anda abastecendo como ele gostaria seu arsenal para fazer rir.

    Em tempos de acirrada polarização, como conseguiu a proeza de agradar à esquerda e à direita com seu mais conhecido personagem, o Peçanha? Todo mundo já esbarrou com um Peçanha na vida, é um tipo popular. Pode ser aquele policial com quem você cruzou numa blitz à noite ou o segurança do shopping. Pessoas de direita veem nele uma caricatura e uma homenagem. Já a turma mais à esquerda o enxerga como uma sátira, uma crítica engraçada. Ele é todas essas coisas.

    A intenção ao criar o personagem, a quem dará vida agora no teatro, é divertir ou provocar? A ideia é que o público ria do início ao fim, mas também quero deixar uma pulga atrás da orelha. O Peçanha aborda futebol, política, racismo, machismo, hábitos modernos e a hipocrisia. Ele espelha uma sociedade desigual, rachada, preconceituosa e que, ironicamente, condena tudo isso. Defende que uma pessoa pode namorar quem quiser, mas, quando o filho se relaciona com alguém do mesmo sexo, deixa aflorar a homofobia. É um personagem muito brasileiro, a contradição em pessoa.

    É mais difícil a vida do humorista na era do politicamente correto? Cresci nos anos 1980, época em que era normal fazer piadas racistas. O politicamente correto surgiu como uma depuração, para que se entenda o que ofende e faz o outro sofrer. O problema é que, em meio ao caldo da polarização, certos segmentos mais progressistas, sem qualificação, se acham no direito de encabeçar uma patrulha ostensiva.

    Em que medida isso afeta o humor? A patrulha desqualificada põe a comédia na mira e não aponta o dedo para os políticos. Mas a onda do politicamente correto é positiva. Ela obriga os profissionais a se debruçar sobre um humor mais inteligente. Agora, não há como tratar de machismo sem ser machista. É preciso mostrar o comportamento condenável para justamente fazer humor sobre a estupidez contida nele. Uma nuance que a patrulha de plantão nem sempre compreende.

    “O problema do politicamente correto é que, em meio à polarização, certos segmentos progressistas, sem qualificação, se acham no direito de encabeçar uma patrulha ostensiva”

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    Tem piada que gostaria de fazer, mas pensa duas vezes e desiste? É natural ter um filtro. Todos os textos do Porta dos Fundos passam por outras pessoas. Houve um caso em que eu mesmo vetei uma piada depois de gravar. Era a cena de um cara que transava e pedia para a mulher ir embora porque sofria de depressão pós-sexo. O tema é até engraçado, explora a hipocrisia do machismo. Quando vi pronto, porém, me sensibilizei com a mulher e não achei divertido. Se não faz rir, não é humor.

    Em seu início, no site Kibe Loco, houve piadas que não faria hoje? Com certeza. Ao longo do tempo, fui aprendendo, ouvindo, me dando conta do que não é apropriado. Lá atrás, fiz piadas com políticos, apresentadores e participantes de reality shows que falavam errado. Não faço mais. O Brasil é um país com uma deficiência de educação enorme, um assunto sério.

    O senhor volta e meia conta piadas abordando a população LGBTQIA+. Já pisou na bola? Devo ter pisado, como muitos. Há uma década, a gente assistia no Zorra Total, programa humorístico de maior audiência da TV, a piadas do cara que olhava para o outro e comentava: “Hum, isso é uma bichona”. Imagina isso agora.

    O Porta dos Fundos errou na mão com o polêmico especial de Natal em que levaram às telas um Jesus homossexual? De jeito nenhum. Os especiais de Natal têm sempre alguma ligação com religião. Já fizemos uma sátira do filme Se Beber, Não Case com um Jesus festeiro e ganhamos o Emmy. Para nós, o fato de o personagem ser ou não gay não faz diferença e não deveria fazer para ninguém. Talvez esse seja o ensinamento. O humor não é só anestésico, é uma maneira empática de contar uma história. Ele educa. Em 2019, o ataque à sede da nossa produtora foi um ato terrorista, movido a intolerância e homofobia.

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    O senhor e o então presidente Jair Bolsonaro trocaram farpas nas redes. Ele era um prato cheio para o humor? Todo político é. Bolsonaro era, Lula é. Neste ano vamos ter eleição e será, de novo, um show de horrores. Agora, o governo Bolsonaro foi sui generis. Toda semana promovia uma bizarrice, como perguntar no Twitter (hoje X) o que era golden shower e mostrar cloroquina para um grupo de emas no Palácio da Alvorada. O fato de ele se dirigir a mim, em tom até meio infantilizado, só confirmou o que já imaginava: o presidente tinha bastante tempo para ficar na internet.

    Chegou a temer uma reação raivosa dos simpatizantes de Bolsonaro? Nem um pouco. Embora se diga que as redes são terra sem lei, e sejam mesmo, há ali um fenômeno quase esquizofrênico. O cara faz ameaças e, quando encontra você na rua, tira selfie. Por incrível que pareça, as duas únicas vezes em que procurei a polícia não foram casos envolvendo política, mas torcedores que não gostaram de me ver fazendo piada com o time deles. No final, pediram desculpas.

    A esquerda reclama de piadas com a mesma intensidade que a direta? Claro. O fanatismo e a estupidez estão dos dois lados. A diferença é que na extrema direita, e não estou falando de todas as pessoas desse grupo, há um DNA mais radical, de partir para a violência armada. É algo que não consigo detectar na extrema esquerda.

    Quem rende mais piada no espectro ideológico? Não há diferença, e o Peçanha é a prova disso. Piada não tem partido.

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    Alguma figura da atual República atiça sua verve cômica? Olha, Brasília está pior do que há vinte anos. Tem muito bandido, pilantra, e ficou mais pobre de caráter, valores, qualificação, o que se reproduz país afora. Em São Paulo, um coach charlatão aparece com 10% das intenções de votos. A política anda mais sem graça. Como diria Jô Soares, já fui roubado por gente melhor.

    O fato de estar namorando a jornalista Natuza Nery, da GloboNews, o aproximou mais do mundo da política? Não falo de vida pessoal. Só comentaria sobre um relacionamento se a pessoa estivesse ao lado.

    Humor dá dinheiro? Ele me proporciona uma vida confortável, mas estou longe de ser rico. Percebo que os comediantes que ficaram muito bem botaram os pés em outros lugares. O Casimiro, da CazéTV, fazia graça na internet e agora tem um canal esportivo com sócios robustos. O Whindersson Nunes foi lutar boxe. Ainda chego lá.

    Em 2023, o senhor também lançou um canal de esportes e logo saiu do negócio. Não deu certo? Deu, sim, tanto que segue fazendo transmissões. A questão é que o negócio sobrevive da compra de direitos esportivos e requer investimentos acima da minha alçada.

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    Como vice-presidente de comunicação do Flamengo, colecionou atritos. O que não funcionou? Fiquei três anos lá, período em que o clube deixou de ser terra arrasada nas redes e virou líder em todas elas. Em geral, as polêmicas brotam do fanatismo e de mal-­entendidos. Lembro de uma história com o jogador Felipe Melo, que achou que eu tinha falado dele e me atacou. Havia feito mesmo um post, mas não tinha nada a ver com o Felipe.

    O que o motivou a entrar no elenco de uma novela como Elas por Elas, na Globo? Desde que o Porta dos Fundos começou a fazer sucesso, recebia convites, mas não aceitava porque não dava tempo. Aí percebi que minha trajetória como ator não estaria completa se não fizesse novela. Adorei conhecer aquela estrutura e contracenar com grandes atores. Repetiria.

    Recentemente, especulou-se sobre um racha no Porta dos Fundos. Procede? É um grupo heterogêneo, no qual não somos todos exatamente amigos, mas sócios. Racha não houve. Evidentemente temos visões distintas de mundo, de negócios e até de humor. É uma união de doze anos, o que já seria tempo demais para um relacionamento, imagina para uma sociedade. Sou o mais pé no chão. Não venho da classe artística. Meus pais eram médicos e só passei a ser reconhecido nas ruas aos 38 anos.

    “O Porta dos Fundos é um grupo heterogêneo, no qual não somos todos exatamente amigos, mas sócios. Racha não houve. Mas temos visões distintas de mundo, negócios e até de humor”

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    Não faz muito tempo que o humor se resumia a poucos programas da TV, como os de Chico Anysio, Jô Soares e Os Trapalhões. A internet foi uma virada de página? Não há dúvida. Antes, para conquistar espaço, era preciso ter um programa na Globo, no SBT ou passagem pelo teatro. Hoje, basta a pessoa pegar o celular, filmar, e tem a chance de viralizar. Ficou tudo mais democrático e diverso.

    Com o avanço do streaming, sobrou espaço para a TV aberta? Claro. Ela é ainda o grande canhão de divulgação e de audiência no Brasil. Mas, como se consome conteúdo de forma tão variada, se fosse o Boni da Globo de hoje, investiria no tripé jornalismo, evento ao vivo e novela, que a emissora sabe fazer como ninguém.

    O uso da inteligência artificial pode transformar a área do humor? Estamos distantes disso. Ela é ainda muito literal, útil para quem quer escrever um relatório ou uma receita de bolo. Para fazer rir, é preciso ter uma sensibilidade a mais.

    O que faz, afinal, alguém ser bom humorista? Não existe receita. O humor pode ser físico, aquele em que o cara diverte pelo jeito de andar, ou feito por alguém mais sério e debochado, como eu. Teve uma época, nos anos 2000, que o bom comediante precisava ser polêmico, belicoso e ofensivo. Eu não gosto disso. Para mim, o humor só precisa ser engraçado.

    Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907

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