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Ney Matogrosso: “Sou homem com H”

Um dos grandes nomes da MPB diz que não se encaixa nos modernos escaninhos de gênero e fala de sexo, drogas e da passagem do tempo, que não o assusta

Por Duda Monteiro de Barros Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Sofia Cerqueira Atualizado em 3 jun 2024, 16h45 - Publicado em 24 Maio 2024, 06h00
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  • Dono de uma trajetória que se mescla à história da MPB, Ney Matogrosso vem soltando a potente voz, capaz de alcançar um agudo raro e fazer reverberar ideias reveladoras de uma mente sem travas, em mais de cinquenta anos de palco. Desde que surgiu na cena musical, ele, que viria a integrar o transgressor Secos & Molhados na década de 1970, vive de cutucar temas tabus — algo que agora, aos 82 anos, pratica com renovado vigor. Idade, para ele, nascido em Mato Grosso do Sul, é conceito abstrato, tanto que anda às voltas com uma agenda lotada de shows — um deles, em São Paulo, promete ser o mais grandioso de sua carreira. Ney acompanha ainda os últimos retoques de Homem com H, filme sob a direção de Esmir Filho que percorre seus altos e baixos. “Tive todas as experiências possíveis com as drogas e realizei minha sexualidade plenamente”, diz o artista na entrevista que concedeu a VEJA em sua cobertura no Leblon, na Zona Sul carioca, onde as paredes são tomadas de coloridas telas abstratas que entregam o humor do proprietário.

    Fez alguma exigência no roteiro de Homem com H, filme sobre sua trajetória? Queria me ver retratado com franqueza, sem nenhuma mentira. Durante o processo, conversei muito com o diretor e cheguei a ler doze roteiros. Normalmente sou durão, não choro, mas, quando fui assistir às filmagens, desabei. Estava ali, na minha frente, a cena em que chegava em casa, com o Marco (de Maria, médico com quem viveu) muito doente. Ele tinha aids e, naquele dia, meu teste deu negativo. Passou na cabeça um flashback de toda aquela época e não aguentei.

    Alguns de seus relacionamentos serão abordados no longa, inclusive com Cazuza. Ele foi o grande amor de sua vida? Um dos meus grandes amores, sim, mas não o único, graças a Deus. Fui completamente apaixonado, mas era difícil conviver com os dois Cazuzas que havia nele. No lado público, se mostrava agressivo, louco, bêbado e cheirava muito pó. Já na intimidade, era o oposto. Foi uma das pessoas mais encantadoras que conheci. A relação durou três intensos meses. Uma vez, ele sumiu por quatro dias e apareceu na minha casa sujo, fedendo, com um traficante a tiracolo. Discutimos, e Cazuza cuspiu em mim. Aí dei um tapa na cara dele e o mandei ir embora. Seguimos amigos, nos amando, mas sem sexo.

    Tanto Cazuza como Marco, único homem com quem morou, morreram de aids. Isso o marcou? Eles receberam o diagnóstico na mesma época. Cazuza morreu e, dois dias depois, foi a vez do Marco, em 1990. Era um período diferente de hoje. As pessoas tinham medo até de encostar em alguém com aids (leia a reportagem na pág. 58). Em uma ocasião, fui levar o Marco, detonado, ao médico, e não queriam que entrássemos no elevador. Cazuza morava perto de mim. Ia visitá-lo e massageava seus pés quando já não conseguia se levantar. Ele me pediu que tomasse AZT, para entrar na mesma onda dele. Não aceitei, claro.

    Teve medo de contrair o vírus? Nunca tive medo da morte, mas não dava para entender como gente tão próxima havia se contaminado e eu, não. Além do Cazuza e do Marco, treze amigos, alguns que eu havia namorado, se foram num período curto.

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    “A relação com Cazuza durou três intensos meses. Uma vez, ele sumiu e reapareceu sujo, com um traficante a tiracolo. Seguimos amigos, nos amando, mas sem sexo”

    O senhor já declarou ter usado muitas drogas. Chegou a se viciar? Nunca fui viciado em nada, embora tenha vivido todas as experiências possíveis nos anos 1970, 1980. Tomei ácidos, usei maconha e pó. Minha dependência hoje é de um remédio para dormir, o Frontal. Comecei por causa da insônia, há vinte anos, e estou tentando me livrar com a ajuda do CBD e do THC (princípios ativos da Cannabis). De vez em quando, tomo uma colher de chá do santo-daime, que me ajuda a ter clareza em determinados momentos.

    Poderia explicar melhor sua experiência com o santo-daime? A primeira vez que experimentei foi em 1987, em Brasília. Não buscava uma religião, mas algo que balançasse o meu coreto. Passei mais de um ano tomando toda semana. Era uma jornada à procura do autoconhecimento. Cheguei a morar quinze dias no meio da Floresta Amazônica. Acordava às 5h da manhã para beber o chá. Às vezes, vomitava. Via aquilo como uma limpeza, para abrir caminhos. Sinto que aquela fase me ajudou a ser mais manso e dono de mim.

    Nascido em cidade pequena e filho de militar, sofreu preconceito ao se assumir gay? Houve questões em casa desde cedo. Embora eu me enxergasse como uma criança comum, que gostava de pintar, desenhar e cantar, meu pai me chamava de viado. Um dia, perto de eu deixar o Mato Grosso do Sul, aos 17 anos, falou isso de novo e respondi: “Eu não sou, não, mas o dia em que for, o Brasil inteiro vai saber”. A praga pegou. Na adolescência, sentia atração por homens, sem ir adiante. Até ali só havia tido relação com mulheres. Aos 20, época em que trabalhava em um laboratório em Brasília, experimentei a primeira relação homossexual.

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    Acredita que sua postura livre no palco tenha ajudado pessoas a assumir sua sexualidade? Nunca tive a intenção de tirar ninguém do armário, mas acredito que aconteça, sim. As roupas e a pintura no rosto, na verdade, eram uma forma de me proteger, preservando minha identidade. Lembro que saí de um show no Maracanãzinho e, no dia seguinte, estava na praia à vontade, ouvindo falarem de mim, sem ser reconhecido. Aquilo me transformava em uma espécie de super-homem.

    Quais loucuras cometeu em seus anos mais transgressores? Realizei a minha sexualidade plenamente. Cheguei a transar com quinze pessoas ao mesmo tempo. Virava uma confusão, uma enorme brincadeira. Houve ainda uma época em que olhava para a plateia e desenvolvia uma relação quase sexual com ela. Tinha vontade de transar com toda aquela gente. Claro que isso não se concretizava. Fora dali, eu era fácil, fácil. Se alguém se aproximasse com vontade e eu me sentisse atraído, não perguntava nem o nome.

    Já foram listadas cerca de setenta identidades de gênero. O senhor se reconhece em algum desses escaninhos? Não faço ideia do que querem dizer exatamente termos como fluido, não binário ou cisgênero. Sou do sexo masculino. Gosto de ter pelo, pau e de ser homem. E isso não é obstáculo para nada na minha vida. Nunca me encaixei em rótulos, mas defendo a liberdade sexual. Durante boa parte da minha vida, transei com homens e mulheres.

    Afinal, é homem com H? Sim. Sou honesto, íntegro e defensor do que é verdadeiro. Isso é ser homem com H.

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    Em um show dos Secos & Molhados chegou a ser xingado de bicha. O preconceito ainda pesa? Antes era velado, agora ele é explícito, incitado. Nos últimos anos, vimos o conservadorismo ganhar sustentação no país. Lá atrás, quando estava cantando num clube rico de São Paulo e me chamaram de bicha, fiz uma pose linda e falei: “Vão tomar no c…”. Muita gente na plateia começou a bater palma. Entendi ali que nunca poderia ter medo.

    Como um grupo tão transgressor como o Secos & Molhados conseguiu se lançar em plena ditadura? Nem eu sei. Havia muita incoerência na época. Algumas músicas adaptadas de poemas, como Rosa de Hiroshima, do Vinicius de Moraes, passavam sem problemas. Outras, como Vou-me Embora pra Pasárgada, de Manuel Bandeira, foram barradas pelos censores, que viam nelas uma apologia às drogas. Também tivemos problemas em shows. Em Brasília, a mulher de um militar queria que eu usasse camisa numa apresentação. Peitei: “Esse figurino não dá. Se tiver que vestir, vou embora, e a plateia depreda tudo”. Fiz a apresentação até o fim, mas, assim como Rita Lee, Caetano Veloso e Gilberto Gil, fiquei uns anos proibido de me exibir no Distrito Federal.

    O senhor já foi criticado por não dar apoio a candidatos. Por que não se mete com política? E eu sou obrigado? Os políticos não me convencem. Prefiro ser free, sabe? Votar em quem eu quero e quando quero, sem envolvimento com a vida partidária.

    Por que tece críticas à Lei Rouanet? A única vez que cogitei recorrer ao benefício tive uma péssima experiência. Entendo que leis como esta dão certo em várias partes do mundo, mas aqui vi casos em que ela foi desvirtuada e contaminada. Cheguei a me encontrar com um integrante do Ministério de Minas e Energia, que disse que me daria 200 000 reais para um projeto, com a condição de eu reservar para ele uma porcentagem do valor. Fui embora. A questão não é a lei, é a forma como se utilizam dela.

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    Seu nome ascendeu ao rol dos assuntos mais comentados nas redes por um motivo curioso: em 2021, uma foto de seu pênis foi parar no Instagram. Cogitou negar que o nude fosse seu? Nunca. Até me orientaram a dizer que tinha sido clonado, mas jamais faria isso. Estava flertando com alguém, que me mandava fotos e eu enviava de volta. Percebi quase imediatamente que tinha postado errado, e logo começaram a me ligar. Sei que nunca mais vai sair da internet, mas não fico constrangido. Espero que façam bom uso.

    “Cheguei a transar com quinze pessoas ao mesmo tempo. Eu era fácil, fácil. Se alguém se aproximasse com vontade e eu me sentisse atraído, não perguntava nem o nome”

    Sua presença foi confirmada no Rio2C, o grande evento de inovação no Rio de Janeiro. Como lida com a tecnologia? Vou falar sobre a minha história e a do Secos & Molhados. Mal sei mexer nas redes, mas faço questão de gerenciar meu Instagram. Não gosto de falar por aplicativo e me recusei a fazer shows virtuais na pandemia. Embora reconheça a importância da tecnologia, sou do olho no olho, do contato.

    Foi vítima de fake news? Sim, e muito antes dessa febre na internet. Espalharam que minha voz era fina porque tinha sido castrado em um acidente de carro. Isso virou verdade absoluta.

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    Como consegue manter tamanha energia no palco aos 82 anos? Sempre fui regrado. Como pouco e me exercito. Faço musculação em casa e já cheguei a me pesar todos os dias, mas desencanei. Meu parâmetro é uma calça de veludo roxa que o Cazuza me deu. Se ela serve, estou bem. A vitalidade também está ligada à mente. Subo no palco pensando que sou o dono da coisa toda e confio que meu corpo vai obedecer.

    Envelhecer o assusta? Nunca me assustou. Acredito em crenças budistas sobre a vida após isto aqui.

    A vida sexual continua a ter um peso essencial? Sempre teve e segue assim. Lá pelos 30, 40 anos, cheguei a ficar viciado em sexo. Tinha que transar todo dia para conseguir dormir. Hoje, vivo um relacionamento com uma pessoa de fora do Rio e consigo me guardar para ela.

    Pensa em se aposentar? Só quando eu for impedido de trabalhar. A felicidade, para mim, está no palco.

    Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894

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